domingo, 16 de dezembro de 2012

O eu e o outro

'Transfiguração', fotografia de Sócrates Magno Torres 



Imaginem um quadro representando a divisão entre duas pessoas feita por um corte  emaranhado de arame farpado. Arame farpado! Entre o eu e o outro há tensões que tornam os laços, muitas vezes, impossíveis de serem feitos. Sinto que a obra transmite a dor provocada pelas relações humanas. 
Eis que há entre o eu e o outro alguma demarcação de até onde se pode ir. Um dos males da civilização, dos entraves da felicidade: saber quando se pode atravessar ou permitir que atravessem. Entre as farpas do eu e do outro há espaços que podem ser feitos sem grandes arranhões.
Uma travessia que se faz sem dor demonstra afinidade. Ou, então, uma aprendizagem na convivência em que as diferenças foram superadas, uma soma. Outras vezes, o adentrar pelos vazios do outro pode ter sido doloroso, causado alguns arranhões, e ainda assim realizado um bom encontro.
Um bom encontro acontece quando é possível atravessar os espaços sem grandes dores ou sem “ultrapassar os limites” como se dizemos no cotidiano. É quando se descobre um caminho entre o eu e o outro que se pode ir e vir com suavidade e graça. Aí, nesse ponto, podemos dizer: amizade. Amigos são aqueles que se divertem entre os vazios do outro, e preenchem sem invadir os centros nervosos do outro ou quando esbarram neles não se cortam, porque há um cuidado e sintonia que permitem que a travessia seja feita. 

sábado, 1 de dezembro de 2012

Bobinho.




          Ela tem mais de cinquenta anos. Seu rosto não os esconde, mas também não diz. É bonita. Não bonita demais. Apenas bonita, um pouco mais do que as outras mulheres, qualquer que seja a idade delas. Também é um pouco mais alta. Veio de uma cidadezinha do Rio Grande do Sul. É bonita, mas não chama atenção nenhuma pelo corpo. Está no Rio há seis meses. Trabalha em uma escola de crianças pequenas, sem função definida. Não é professora, mas de vez em quando reforça o aprendizado de uma letra, orienta a amarração de um sapato, dá de aviãozinho na boca de alguém, ou pede para que comam por si mesmas. Não é cozinheira, embora volta e meia seja vista descascando e picando cenoura e chuchu. Quando só tem ela para fazer isso, limpa a mesa e o chão que alguma criança sujou. De constante só a função de abrir e fechar a porta aos responsáveis que vêm deixar ou buscar as crianças. Abre e fecha a porta também para mim, que trabalho lá e não sou professor, cozinheiro, faxineiro ou porteiro, mas de vez em quando me meto em alguma coisa ou outra, pra agradar.
“Bom dia”. “Bom dia”. “Tá calor.” “É, tá calor”. Tenho essa distância com quase todas. Só dá mulher lá, mais um homem e eu. Falo um pouco mais do que isso com uma, com outra, e ainda assim ocasionalmente. Ao ver os aviõezinhos daquela mulher, disse a ela: “ele tem que aprender a comer, na escola as crianças vêm pra aprender as coisas”. Ela concordou, é respeito pelo meu estudo. A escola tem muita coisa pra fazer, e ela encara, sem se dar o trabalho de discutir comigo. Então, não é bem respeito pelo meu estudo. Ela é sacudida, se reclamam aqui, arruma logo outra função toda dela ali. “Ficar discutindo com rapaz?”, penso por ela.
Certo dia eu ia descendo por um caminho diferente do habitual, que se toma numa bifurcação próxima da escola. Era minha segunda vez por ali. Ao chegar em um praça, dei com ela atrás de um carrinho de churrasco. Apareci no seu campo de visão, ao mesmo tempo em que ela apareceu no meu. Os olhos dela se assustaram, e se arrastaram em mim, durante um tempo. Não tive reação, nem de desviar. Ela gelou, eu sei que gelei. Os corpos, contudo, continuaram o que estavam fazendo. Ela não usava mais o uniforme. Vinte minutos haviam se passado do fechamento da escola, e ela alta, se sobressaindo atrás do braseiro, abanando sem parar os espetos quase prontos. Com a outra mão levantava o saco de carvão para alguém. Pessoas com suas latinhas e conversas em volta.
Eu queria cumprimentá-la discretamente. Ela não me olhou por uma segunda vez. A quantidade de coisas que ela tinha pra cuidar disfarçava o frio escalando os nervos. A mão tremeu segurando o carvão. O rosto dela era bem diferente do das outras pessoas, branco, petrificado e de olhos frios.
Desci a escadaria do lado da praça, como já pretendia fazer. “Como vai ser quando encontrá-la na escola?”, fiquei me perguntando, perguntei pra minha mulher. “Não fala nada pra ela”, fui aconselhado. “Eu te vi”, “eu também te vi”. Por que não dizer? Tudo bem!
Ela vende churrasco e ficou com vergonha de mim. Ninguém da escola passa por ali. Porque diabos não aproveita a noite pra estudar, pra não precisar mais ficar no churrasco e na escola? Deve estar cansada, chega em casa e já tem que sair pra vender churrasco à noite, tanto trabalho e ela pegando de uma vez pra fazer. É com ela mesma.
            No outro dia, quando retornei à escola, outra pessoa estava à porta. Fui fazer as minhas coisas sem pensar naquele assunto, no que dizer, não ia dizer nada. Mas passaria problema ao cumprimentá-la? Ela não ia querer falar, seria ruim pra ela mesma se falasse, vendedora de churrasquinho. Eu estava só de passagem, não tinha nada a ver.
Será que não posso só comentar, e rapidamente tranquilizá-la? Iria deixá-la calma, sem motivos pra mal estar. Sabia como fazer isso. Finalmente nos esbarramos. Cumprimentei sem incomodar seu ritmo de trabalho, mas sei que a fiz lembrar-se daquela noite, silenciosamente. Não houve conversa, mas posso dizer inteirinha a história dela: mais de cinquenta. Acabou um namoro há pouco. Não teve filhos, e não estudou muito. Desde nova trabalhando em barracas de comida em festas típicas. Lá no sul tem muito. E trabalhou em comércio, caixa de supermercado, é meio nervosa, prática. Conta logo o troco e entrega pro cliente. Mesmo antes de consumir a fila, aceita o papo dos homens bebendo cerveja. E bebe o seu copinho. Não ia além com eles, desde os vinte já tinha um marido. Casamento após namoro, certo, com casa, esperando trabalhar um pouco pra entrar na faculdade. Acabou passando o tempo e não estudou. Atrás dos balcões era só sorriso e charme para as conversas, dando a todos as mesmas respostas, sem poder elevar muito os assuntos. O frio era daquele jeito mesmo, assim como as diferentes eleições. A boa era beber outra, mais outra, até o fim da noite. Seu corpo balançava enquanto a boca repetia o não. Mantinha-se para a casa e o marido.
As famílias dos dois se conheciam desde bem antes, e passaram a se visitar mais. Ambos largavam seus trabalhos às 18 horas do sábado e iam para a região de roça, onde moravam os avós dele. Os velhos tinham-na exatamente como da família, alguém que contava sobre o seu trabalho, sem preocupação, e eles ouviam se entreolhando, sem comentar. A cidade era diferente da roça, a mulher trabalhava com o público e passava por tudo aquilo.
           O casamento terminou antes que completasse dez anos, para desgosto de todos. Nunca ficaram muito claros os motivos: não era ciúmes dela, que não os tinha, nem dele. Não se sabe se ela o traiu, o que se sabe é que ficou abafado. A separação foi sem grande estardalhaço, mas ficou difícil para ela continuar no mesmo trabalho. Empregou-se numa farmácia em outro bairro. Um ou outro a conhecia, mas, por ser um novo ambiente, não chegava a se formar uma nuvem de comentários acerca do casamento e do prejuízo moral dela em se separar. As conversas miúdas não cresciam até certo limite.
Ela estava mais solta para as situações novas, e as desejando. Via pouco a mãe, que a amava e não falava muito sobre as mudanças na vida da filha. Ria e jogava aqueles olhos claros para os homens mais jovens, e à noite frequentemente voltava com a companhia de um deles. Paravam num bar para as últimas. Os passantes a conheciam. Ela falava pouco de si, e não se importava que falassem. Levantava o copo com um sorrisinho nos lábios finos. Iam pra porta da casa dela, o beijo acontecia logo, o homem pegava coragem. No dia seguinte ele entrava naquela casa. Trepavam na cama arrumada. Os homens não voltavam depois, não até passar um tempo. Ela seguia fazendo isso com os demais, até que com um deles engatou um namoro. É, ela tentou de novo o que com ela não dá certo.
Fez uma tatuagem no pescoço depois da idade. Pra mim ela queima todos os cartuchos da vida, tatuando um momento que ela sabe breve, na ilusão de fazê-lo durar. Ela própria não tem duração. Da mesma forma que trocou uma cidade por outra, e um homem por nenhum, ou alguns, veio para o Rio. As coisas se ajeitaram depressa, uma ex-professora da escola conseguiu uma posição pra ela. Alugou um quarto a pouca distancia. Fiquei sabendo que ela quer trocar de casa. Vi seu churrasquinho, me surpreendi. Ela foi sagaz em montar aquela barraca pra ganhar um troco à noite.
A escola e a barraca ela ia levando, mas ela tem que deixar o churrasquinho de lado e entrar numa faculdade, pra depois conseguir um emprego melhor. Foi o que eu fiz, não trabalhei com nada até ter uma profissão pronta e os lugares esperando eu me oferecer. As pessoas têm que querer melhorar. Churrasquinho dá uns cem reais por dia, vejo o bolo de notas nas mãos dos vendedores, mas a gente tem que querer mais da vida, ter uma profissão. Se ganha pouco é só no começo. A coisa melhora. Devagar devagar, vai melhorar pra mim, só que eu estudei, me vêem no meu trabalho e me sinto bem. Se eu estivesse atrás de uma barraca, estaria com vergonha. Com um bolo de notas no bolso, trabalhando pra caralho e preferindo que não me vissem. Na escola ela gosta das crianças, se preocupa com elas, coloca gelo no galo de um, ri do jeito de outro. Igual na barraca, feliz servindo os homens de comida e bebida.
 Daqui a pouco ela some, as pessoas vão ver. Só vai ser chato quando encontrarem-na fazendo a mesma coisa, em outro lugar. Vai pegar aquilo tudo e se mudar pra mais adiante. Aí sim eu vou atrás dela, “porque você saiu da escola? Aonde está agora?”. Escondo minhas impressões, e já que estou ali, ela se abre, nem se preocupa em não confiar em mim. Pego uma cerveja bem gelada, vou bebendo e concordando. Ali eu sou cliente dela. Ela não está mais em escola, tá à procura, mas tá fora. É toda do churrasquinho, e me serve. Sou legal pra ela, não me intrometo. O que eu penso está guardado. Mais um ou dois homens enfiam na conversa as coisas que aconteceram com eles. Ela me apresenta, rindo, profissional para eles consultarem à vontade. Todos riem, me sinto numa boa e um otário, “o que ele acha que sabe? Como vai correr daqui?”, tendo que me cuidar.
Ela falava perto de mim. Seu bafo alcoólico era quase o ar todo que eu respirava. Eu não desviava o nariz para um ar mais livre, deixava-me lá, encarando a conversa de que realmente era muito difícil aquilo, ficar até tarde na rua aguentando as chateações de às vezes, carregando o carrinho pesado para a praça e para casa, passando a manhã cortando molho e carne. Não precisava cumprir ordem de ninguém, era a chefe dela mesma. Tinha amigos, uns caras que gostavam dela, bebiam bem. Mulher não, que mulher fala muito, acha ruim o jeito dela de olhar pros homens com os olhos avermelhados de cerveja. Ria pra mim, até com os dentes fechados no sorriso o hálito doce e azedo saía. Outros homens chegaram, saíram, ela sem me perder e deixar ir. Mas cinco minutos eu ia encontrar uma brecha pra sair, que estava tarde.
Em certo momento, senti bem presente na minha língua o gosto daquele ar. Um segundo antes o gosto não estava lá, só o da minha cerveja com baixa fermentação. Agora minha saliva era grossa e azeda, meus lábios adocicados e relaxados, como se uma cobra houvesse me pego. A mulher continuava feliz, passou a língua nos lábios muito finos e pintados de rosa, encarquilhados. Podia virar-se à esquerda e à direita, muito atenta aos pedidos e alegre para os outros assuntos. Sabia, contudo, que eu ficaria parado ali. Tinha cuidado e apetite por mim. Minha cabeça ficou leve, toda a porção correspondente à face, também os ouvidos, pediam mais uma cerveja e mais da atenção dela, sem pensar. O resto do meu corpo estava paralisado. Era apenas um saco vazio para as ramificações da cabeça.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

BREU




Do lado de fora,nem consegui imaginar o que se passava por dentro. Havia gente na borda da festa. Gente com um rosto plácido, quase angelical. Um sorriso levemente luzia nos olhos daquela gente. Olhei a todos que ali estavam, embora não tenha gravado um traço de rosto qualquer. Toda minha memória antes enciclopédica, fragmentou-se a partir do momento que atravessei a porta, passando pelas duas gárgulas de punhos antipáticos, impávidas e orgulhosas, que sem a menor cerimônia me revistaram.
Entrei no recinto. Um barulho inicial desceu até mim como cafeína. Despertei para um sono inquieto. Meu corpo profanado e castigado pelo cotidiano aos poucos foi se eletrificando. Bem aos poucos. De modo que só percebi  a diferença desse estado para o anterior quando já estava em outra voltagem. O faiscar das luzes ajudou a me embalar no sono desperto e a visão de rostos tão infinitos embolou minha percepção. Eram tantas luzes a romper minha retina, que o que era verdadeiramente claro(?) me fazia ver escuro. Meus olhos fatigados só procuravam o breu. No piscar de cada milésimo de segundo, meu espírito, se é que este nome seja o mais conveniente para tal designação, se confortava. Meu corpo, ao contrário, não sentia conforto, nem almejava a comodidade. Meu corpo me tomava numa dança obscura e me arrastava...
Nas paredes, as sombras graciosas e confessas, omitiam ao mundo o que se fazia nas penumbras. As sombras refrescantes, cheias de alento e despudor - sombras protetoras e guardiãs - não como o útero trevoso e materno,pois maternidade, apesar de proteção é censura e castração. As sombras das paredes são como tias distantes que ao invés de reforçarem a catequese, sem querer te ajudam a quebrar o decoro. E nessas trevas confusas de seios, batons, bocas, dentes, peles e todas as dimensões, todas as simetrias e assimetrias, tudo que se pode chamar de contato, tudo, tudo se borrava, se pichava, se levava e ia. Eu nada via. Estava cada vez mais acorrentado à cegueira santa e luminosa que guiava meus sentidos.
Penetrei uma porta que me levou a um labirinto ainda mais profuso e enigmático. Aqui faço uma nota: *para  os bons de conduta, imaculados e distintos, encontrei  o umbral mais repugnante e fétido, travestido por uma figura feminina ávida por sangue e miséria, um cenário dantesco; em contrapartida, aos cínicos (como eu talvez), o ambiente era um paraíso de anjos decaídos prontos para reascenderem ao Céu. O firmamento pode ser azulado para os que estão do lado externo. Mas para os fortes,tenazes e eleitos, ele era a cor escura mais escura que pode haver. Um escuro inominável, desconhecido e não-catalogado. Um escuro  que está dentro de nós (será?).*
Fui adentrando a fenda  sombria, me encrespando em relvas de gente, sons e grunhidos. Miados, chiados, vozes sussurradas nos entreouvidos. Movimentos, semblantes, vibrações rasteiras. Pequenas risadas. Golfadas. Smashs! Sibilações. Cócegas. Sons sutis de dentes e peles e dentes novamente. Tamancos quebrando o falso silêncio. Saltos agulhas riscando o  chão e se encontrando com  pequenas multidões de tênis, sapatos e outros saltos. Todo mundo de sobreaviso. Todos sendo sobressaltados. Todos dormindo.
Perdi todas as noções. O tempo era outro. Uma ampulheta específica e única marcava aquilo que eu entendia como tempo. Não menos indefinido e obscuro era o espaço. Havia um vácuo. Altura, largura e profundidade se misturavam e brincavam conosco, como se fossem crianças mentirosas e trolladoras. Não havia certeza nenhuma. Nossos corpos eram nossos astrolábios. Haviam polos magnéticos,é certo. E só. Senso nenhum havia e nem poderia.
Procurei uma série de coisas e uma delas se chamava Beleza. A Beleza total, verdadeira e derradeira. Todavia, descobri sem querer, que naquele mundo, a Beleza era vaga,(talvez não só naquele mundo, mas neste que me encontro cá agora).  Como ela era invisível, meus membros farejavam-na. Eram eles que me diziam o que era belo ou horrendo. Compreendi  que a Beleza vaga por aí e acolá. Mas ainda assim a desejo, mesmo que ela serpenteie de forma ligeira, superficial e irregular. Há certamente eternidade no que é efêmero. Quero a eternidade das frações de segundos.
O escuro total revelou a minha divindade. Sou o herói. Sou Teseu e Minotauro. Aquele que expande e aquele que destrói. Só nas trevas conseguimos sê-los. Fora dela nos bipartimos e fragmentamos. Percorro o escuro no intuito de libertar aquilo que mais protejo, e aprisionar meus sombrios desejos. Para me libertar e me afugentar . O fio inicial que me conduziu, acabei por superá-lo. Retesei-o  e depois, sem o mínimo remorso, fiz o corte. Alcancei o inalcançável. Uma parte disso consegui trazer para o mundo de fora, da luz, da certeza. Infelizmente, muito do que ganhei, tive de ofertar às sombras. Sacrifiquei para conseguir retornar. Não que a volta fosse mais nobre que a partida, mas a covardia também faz parte de mim, confesso.
O nome da descoberta fica guardado. Se me foi revelado, algo me fez apagar da mente. Mais importante que conhecer a nomeação de algo, é ter na pele a sensação do que foi. E esta memória específica nunca se apagará, pois  no universo que estive, não fui apenas herói. Fui mais que isso. Fui o rei.

Um grito, suave, ao mundo



Sombrinhas dão um ar elegante e charmoso.   Mas dificilmente carrego-as comigo, dá trabalho e ocupa espaço. Tem dias que o que eu quero mesmo é me molhar. Outro dia fazia muito calor, depois fez chuva. Bem quando eu voltava a pé pra casa. Foi gostoso sentir minha roupa grudando de um jeito refrescante em mim.

Contemplo a sombra, nos dias de sol e nuances coloridas. Nada melhor do que caminhar à margem da serra envolta por árvores e passarinhos cantando. Ainda mais se levo uma mochila de pano com garrafa de água, livro e lanche. Uma caminhada romântica, em tarde de primavera, com tempo para ler algumas páginas ao ar livre e fazer um piquenique.

Nos dias cinza eu me entrego a introspecção. Entro no tom da cor, feito me embriago na escuridão da noite: sensibilidade à flor da pele. Ainda que o mundo funcione em outro ritmo. Sinto as pessoas ao meu redor não percebendo as nuances dos dias, nem seus acordes. Todos parecem ligados no piloto automático e eu, na minha, sem direção. Também estou caminhando, com os meus passos lentos e, às vezes, com a respiração afobada. Há que se concentrar na respiração, direcionar os atos e os dizeres. Os dias estão passando, passando e só se vive uma vez. Esta vida em que estamos caminhando (nos nossos passos tranquilos ou apressados) é uma só. Acreditem no que a fé de vocês permita, eu também creio nas boas coisas, mas esta vida, a vida que estamos vivendo – é agora.

domingo, 11 de novembro de 2012

Um gato embaixo do carro.


Dez pras onze da noite e ele foi comprar pão. Um pão ou dois já estaria satisfeito, e ainda sobrava pra depois. Caía uma chuva fina. Às vezes ela afinava ainda mais. Ele não sentia. Os para-brisas dos carros estacionados e as poças no chão negro moviam-se, assim mostravam que a chuva não parou. A grande avenida, a principal daquela região, é formada por duas pistas separadas por um valão, com ruas transversais e pequenas calçadas e passagens de pedestres. De dia, a avenida está cheia de todo tipo de veículos e gente. Agora apresenta um vazio cortado pelo som de pneus se arrastando no asfalto molhado. Não havia impedimentos no caminho do homem para o mercado.
 Ao atravessar a avenida, ouviu um miado baixo, seguido de outro, mais outro. Procurou na curta calçada que guarda o valão da rua, olhou atrás das muretas de meio metro de altura, que existem para ninguém cair na água. Antes de encontrar o gato, branco e esquálido, por fome ou por ser filhote, ou por ter tido filhotes, ouviu mais miados assustados. Foi afoito pra cima, fazendo tsc tsc para prender o olhar do bicho e ele não correr. O gato chegou mais pro lado. O sujeito não gostou da dispensa. Deixou-o lá e foi finalmente atrás do pão.
 Não chegou a dez passos e já estava com remorso, imagem do gato na cabeça, culpa por o bicho ser arredio e correr perigo próximo da queda para o rio de água podre. Passaria por lá na volta do mercado, de qualquer forma. Tomara encontrar o gato, ia com mais calma. Iria ajudá-lo, devia ajudar o pobre bicho abandonado. Se não estivesse lá foi porque conseguiu se virar e, afinal, não estava tão mal. Sentiu um pouco de alívio. Não ia precisar levar ninguém.
  Entrou no mercado. As fortes luzes limparam sua consciência do gato e do compromisso. Não demorou no lugar, estava fechando e havia pouca gente. Era ele e mais alguns embaixo daquelas lâmpadas brancas. Foi só pisar fora do mercado e o gato veio com tudo na sua cabeça, abandonado, molhado, precisando de um amigo, um coração que o resgate e tenha paciência do seu jeito desconfiado, que não sai tão fácil, sempre vai carregar uma marca de rua.
 O gato estava no mesmo lugar. Chamou-o com mais sons, sem avançar. Não houve resposta, só o olhar vindo de baixo. Deu um passo, chamou de novo. O gato virou a cabeça pra direção oposta, mas não andou. Devolveu o olhar e miou mais, um alerta para algo que não estava exatamente nele, mas nas coisas em volta. As magras costas cada vez mais empapadas. O homem curvou-se e ofereceu a mão. O gato veio lentamente, cheirou. Foi pego pelas costas, não muito alto. No meio da travessia para a outra calçada, as patas posteriores se esticaram na tentativa de alcançar as mãos que o seguravam, as unhas o livrando e fazendo cair na reta dos carros. As unhas não foram sentidas, só os dedinhos raspando. Talvez não estivessem lá, talvez tivessem caído junto com os caminhos de rato de pelo faltando, de micose. O que tinha a mais era chuva, graxa em cima da cabeça branca e fragmentos de qualquer coisa na barriga.
 Chegaram na marquise de uma padaria. Tão logo foi colocado no chão, o gato mirou pra porta de ferro e encontrou uma fresta pra cheirar, querer entrar. Andou na direção contrária da que o homem queria. Chamou-o com aquele som de boca, o bicho ia entrar na padaria. Novamente pego pelas costas, bem em cima, na nuca, como a mãe domina o filhote, deixa imóvel. O homem aproveitou pra avançar três metros. Pelos repelões, teve que soltar, não queria ferir as suscetibilidades do gato. Ele tem que desejar vir. Nem procurou saber de que era a entrada por entre o gradeado verde, sumiu lá dentro. Já não passava por chuvas e carros, ganhou oficina, edifício, garagem, escola inteira, galpões pra explorar e encontrar cantinas, alunos, televisões, marmitas. Ao ser chamado, voltou.
 O homem foi para os lados em que ia fazer alguma coisa boa, alimentar, sabia lá, não pensava em como faria. Andou olhando pra trás. O bicho seguiu. Seguiu, contudo, sem deixar de parar diante de portas ou de experimentar qualquer entrada pra lugares escuros, sem os postes e as marquises que abrigavam do valão e da chuva. Estava displicente, sem querer muito. O homem acreditava que se havia feito confiar, que o bicho vinha igual amigo, contando tudo, parceiro de andadas na rua, selva em que o animal é que sabe, usa como bem entende, sem qualquer sentimento. Encaminhava-se para o lugar do homem. Aquela bacia é dele, será limpa quando estiver na hora, a hora dele. Nesse esquadro, ele usa como entender. E ele entende o caminho, está vindo mais ou menos em linha reta, na direção certa. Uma ambulância manobrava para estacionar em cima da calçada, para ajudar na morte de alguém. A luz da sirene refletiu-se vermelha nos olhos do gato, paralisando-o. O homem abriu distancia e seu chamado o guiou pra fora dali.
Entraram na rua escura em que morava o homem, carros estacionados em ambos os lados, muita calma para o gato parar e observar. Entraram na varanda da casa. O gato farejou as vidas dentro da casa acesa, a única da rua. Esperou sem se esconder, sabia o que faria o homem, já conhecia seu retorno com uma vasilha cheia de comida. Comida de gato. Caiu de boca, sem olhar antes, sem se concentrar, sem disfarçar. Comeu até o último grão seco. O cachorro da casa espiava a porta da garagem entreaberta. O gato sabia dele. Foi pego novamente pelas costas. O homem abriu a porta, e rapidamente espantou o cachorro.
 O gato foi posto no centro da sala, bem visível. Não estava encolhido, começava a exploração. Antes que pudesse ver, já havia sentido o cheiro do gato amarelo solar que morava ali. Correu para a cozinha, e o outro, que ganhava em tamanho, à base de ração, o encurralou. Os miados de ambos saíram como gritos de palavras horríveis e desesperadas. O dono afastou seu gato com o pé. O branquinho, com a testa rajada de graxa, correu de volta para a porta da garagem. O homem perdeu-os de vista. Os gritos aumentaram. Eles estavam embolados, mas o corpo do amarelo era maior e podia receber o pé que imprensava e chutava para tirá-lo do combate. O gato da casa agarrou-se naquele pé, não para salvar-se, mas para defender-se com as unhas e a boca cravada, fazendo surgir muito sangue. Quando deram por si, o gato branco já não estava mais lá. No carro em frente também nada. Talvez ainda estivesse próximo, pois havia sido demonstrado que o carro o acalmava. O homem chamou uma vez. Não olhou embaixo daquele carro, ou dos outros.
Fechou a porta. Lavou o pé com a mangueira d’água, bastante água. O sangue não parava. Mal desviava o fluxo de água, ele novamente brotava. Quando a ferida acalmou um pouco, foi procurar seu gato. Fez um carinho no bicho bom, que não guarda remorso da agressão. Estava tudo bem.
          Gatos são territoriais, aquilo não daria certo, mesmo que ele tentasse. Arranjar um canto pra cada um, ou separar por portas, apresentando-os aos poucos, tudo isso por um novo gato: infrutífero, não romperia a resistência entre eles, gatos não mudam. Muito trabalho, dias ocupados, pensou covardemente o homem. O sol ameaçava despontar. As horas passaram rápido. O homem pensava baixo, um pensamento por vez, evitando o atropelo. Tinha certeza, aquilo não era possível, não daria para os gatos conviverem. O sangue não tinha parado. Meteu-se embaixo do telhado, entre o telhado e a laje da casa, pela passagem complicada do segundo andar. Há um ano não limpava o lugar, a poeira deixava o chão negro. O sangue se transformava em lama. Estava suado, calmo. Tudo escuro em volta, mas, agachado, os pensamentos vinham claros. 
O outro gato estava mais uma vez sozinho, a chuva não havia cessado. O gato de casa é metido, tudo é dele, odeia a raça, pertence a outra. É chutado, se defende, mas em seguida perdoa. O outro não suportou, foi para baixo de um carro, de onde se vê a rua, a fresta, a oportunidade, e planeja, sai e retorna, até que tirem o carro. Existem outros e mais outros carros. Magro e molhado, olhando e se exercitando. Idade, alergias e outras doenças desconhecidas. Vigor que não se entende. Decisão sobre onde permanecer e o que fazer. Decisão de quando partir. O sangue do homem não parava, ardia. Entendia tudo, a cabeça calma, os músculos se preparando para uma súbita explosão.
       O sol já armado, a mulher reparou que o marido não estava na cama. Levantou-se e foi ao banheiro. Saiu e chamou por seu nome. Não teve resposta. Ele não tinha compromissos àquela hora, não naquele dia, cadê ele então pra ela terminar de dormir, aproveitar o resto da madrugada? A passagem para o telhado estava aberta. Eles nunca abriam. Ela chamou. Desceu os degraus. O gato amarelo estava como de costume. Apagou a luz acesa da sala. Seguiu para a garagem, vendo a porta aberta. Aproximou-se e passou os olhos pela rua, com seus primeiros movimentos. Não demorou muito, pois estava meio despida. Fechou a porta e a olhou daquele jeito, fechada, a claridade entrando pelo vidro. Era um novo dia. Voltou pra sala e sentou-se no sofá, com os cotovelos apoiados sobre os joelhos, sem saber o que pensar. O marido não estava mais lá. E em uma dessas noites de chuva, veremos esta mulher cruzando as ruas com pressa, para pegar o mercado antes de fechar. Um miado baixo se fará ouvir, interrompendo seu caminho. Ela chamará pelo bicho. A criatura encolhida entre o chão e o carro, eletrizada e atenta com as oportunidades, porá a cabeça para fora. As luzes dos carros se refletirão em seus olhos. A mulher reconhecerá seu marido. A criatura não reconhecerá aquela mulher.

Vivendo no Escuro

    Vivendo no Escuro

A escuridão é o olhar escuro de uma alma desencarnada
De seres que tragicamente de fato a tem encarnada
Sem saberem que é fácil se achar na escuridão

Nós sempre podemos nos achar nessa punk situação
Da escuridão que pra alguns é detestável
Da escuridão que para alguns é implacável

O ponto da escuridão você pode refletir
Da saída pela obstrução, cavando até o coração
No coração perfurando-se até a alma

escuridão na alma é a causa das piores pragas
escuridão na alma é a causa das doenças e mágoas
Não é digno à ninguém a posse duma alma escura

É sinônimo de sofrimento refletido no olhar escuro
Que  não olhando concluímos que é da alma intrusa
E notamos que a pobre criatura situa-se no vale das sombras