domingo, 11 de novembro de 2012

Um gato embaixo do carro.


Dez pras onze da noite e ele foi comprar pão. Um pão ou dois já estaria satisfeito, e ainda sobrava pra depois. Caía uma chuva fina. Às vezes ela afinava ainda mais. Ele não sentia. Os para-brisas dos carros estacionados e as poças no chão negro moviam-se, assim mostravam que a chuva não parou. A grande avenida, a principal daquela região, é formada por duas pistas separadas por um valão, com ruas transversais e pequenas calçadas e passagens de pedestres. De dia, a avenida está cheia de todo tipo de veículos e gente. Agora apresenta um vazio cortado pelo som de pneus se arrastando no asfalto molhado. Não havia impedimentos no caminho do homem para o mercado.
 Ao atravessar a avenida, ouviu um miado baixo, seguido de outro, mais outro. Procurou na curta calçada que guarda o valão da rua, olhou atrás das muretas de meio metro de altura, que existem para ninguém cair na água. Antes de encontrar o gato, branco e esquálido, por fome ou por ser filhote, ou por ter tido filhotes, ouviu mais miados assustados. Foi afoito pra cima, fazendo tsc tsc para prender o olhar do bicho e ele não correr. O gato chegou mais pro lado. O sujeito não gostou da dispensa. Deixou-o lá e foi finalmente atrás do pão.
 Não chegou a dez passos e já estava com remorso, imagem do gato na cabeça, culpa por o bicho ser arredio e correr perigo próximo da queda para o rio de água podre. Passaria por lá na volta do mercado, de qualquer forma. Tomara encontrar o gato, ia com mais calma. Iria ajudá-lo, devia ajudar o pobre bicho abandonado. Se não estivesse lá foi porque conseguiu se virar e, afinal, não estava tão mal. Sentiu um pouco de alívio. Não ia precisar levar ninguém.
  Entrou no mercado. As fortes luzes limparam sua consciência do gato e do compromisso. Não demorou no lugar, estava fechando e havia pouca gente. Era ele e mais alguns embaixo daquelas lâmpadas brancas. Foi só pisar fora do mercado e o gato veio com tudo na sua cabeça, abandonado, molhado, precisando de um amigo, um coração que o resgate e tenha paciência do seu jeito desconfiado, que não sai tão fácil, sempre vai carregar uma marca de rua.
 O gato estava no mesmo lugar. Chamou-o com mais sons, sem avançar. Não houve resposta, só o olhar vindo de baixo. Deu um passo, chamou de novo. O gato virou a cabeça pra direção oposta, mas não andou. Devolveu o olhar e miou mais, um alerta para algo que não estava exatamente nele, mas nas coisas em volta. As magras costas cada vez mais empapadas. O homem curvou-se e ofereceu a mão. O gato veio lentamente, cheirou. Foi pego pelas costas, não muito alto. No meio da travessia para a outra calçada, as patas posteriores se esticaram na tentativa de alcançar as mãos que o seguravam, as unhas o livrando e fazendo cair na reta dos carros. As unhas não foram sentidas, só os dedinhos raspando. Talvez não estivessem lá, talvez tivessem caído junto com os caminhos de rato de pelo faltando, de micose. O que tinha a mais era chuva, graxa em cima da cabeça branca e fragmentos de qualquer coisa na barriga.
 Chegaram na marquise de uma padaria. Tão logo foi colocado no chão, o gato mirou pra porta de ferro e encontrou uma fresta pra cheirar, querer entrar. Andou na direção contrária da que o homem queria. Chamou-o com aquele som de boca, o bicho ia entrar na padaria. Novamente pego pelas costas, bem em cima, na nuca, como a mãe domina o filhote, deixa imóvel. O homem aproveitou pra avançar três metros. Pelos repelões, teve que soltar, não queria ferir as suscetibilidades do gato. Ele tem que desejar vir. Nem procurou saber de que era a entrada por entre o gradeado verde, sumiu lá dentro. Já não passava por chuvas e carros, ganhou oficina, edifício, garagem, escola inteira, galpões pra explorar e encontrar cantinas, alunos, televisões, marmitas. Ao ser chamado, voltou.
 O homem foi para os lados em que ia fazer alguma coisa boa, alimentar, sabia lá, não pensava em como faria. Andou olhando pra trás. O bicho seguiu. Seguiu, contudo, sem deixar de parar diante de portas ou de experimentar qualquer entrada pra lugares escuros, sem os postes e as marquises que abrigavam do valão e da chuva. Estava displicente, sem querer muito. O homem acreditava que se havia feito confiar, que o bicho vinha igual amigo, contando tudo, parceiro de andadas na rua, selva em que o animal é que sabe, usa como bem entende, sem qualquer sentimento. Encaminhava-se para o lugar do homem. Aquela bacia é dele, será limpa quando estiver na hora, a hora dele. Nesse esquadro, ele usa como entender. E ele entende o caminho, está vindo mais ou menos em linha reta, na direção certa. Uma ambulância manobrava para estacionar em cima da calçada, para ajudar na morte de alguém. A luz da sirene refletiu-se vermelha nos olhos do gato, paralisando-o. O homem abriu distancia e seu chamado o guiou pra fora dali.
Entraram na rua escura em que morava o homem, carros estacionados em ambos os lados, muita calma para o gato parar e observar. Entraram na varanda da casa. O gato farejou as vidas dentro da casa acesa, a única da rua. Esperou sem se esconder, sabia o que faria o homem, já conhecia seu retorno com uma vasilha cheia de comida. Comida de gato. Caiu de boca, sem olhar antes, sem se concentrar, sem disfarçar. Comeu até o último grão seco. O cachorro da casa espiava a porta da garagem entreaberta. O gato sabia dele. Foi pego novamente pelas costas. O homem abriu a porta, e rapidamente espantou o cachorro.
 O gato foi posto no centro da sala, bem visível. Não estava encolhido, começava a exploração. Antes que pudesse ver, já havia sentido o cheiro do gato amarelo solar que morava ali. Correu para a cozinha, e o outro, que ganhava em tamanho, à base de ração, o encurralou. Os miados de ambos saíram como gritos de palavras horríveis e desesperadas. O dono afastou seu gato com o pé. O branquinho, com a testa rajada de graxa, correu de volta para a porta da garagem. O homem perdeu-os de vista. Os gritos aumentaram. Eles estavam embolados, mas o corpo do amarelo era maior e podia receber o pé que imprensava e chutava para tirá-lo do combate. O gato da casa agarrou-se naquele pé, não para salvar-se, mas para defender-se com as unhas e a boca cravada, fazendo surgir muito sangue. Quando deram por si, o gato branco já não estava mais lá. No carro em frente também nada. Talvez ainda estivesse próximo, pois havia sido demonstrado que o carro o acalmava. O homem chamou uma vez. Não olhou embaixo daquele carro, ou dos outros.
Fechou a porta. Lavou o pé com a mangueira d’água, bastante água. O sangue não parava. Mal desviava o fluxo de água, ele novamente brotava. Quando a ferida acalmou um pouco, foi procurar seu gato. Fez um carinho no bicho bom, que não guarda remorso da agressão. Estava tudo bem.
          Gatos são territoriais, aquilo não daria certo, mesmo que ele tentasse. Arranjar um canto pra cada um, ou separar por portas, apresentando-os aos poucos, tudo isso por um novo gato: infrutífero, não romperia a resistência entre eles, gatos não mudam. Muito trabalho, dias ocupados, pensou covardemente o homem. O sol ameaçava despontar. As horas passaram rápido. O homem pensava baixo, um pensamento por vez, evitando o atropelo. Tinha certeza, aquilo não era possível, não daria para os gatos conviverem. O sangue não tinha parado. Meteu-se embaixo do telhado, entre o telhado e a laje da casa, pela passagem complicada do segundo andar. Há um ano não limpava o lugar, a poeira deixava o chão negro. O sangue se transformava em lama. Estava suado, calmo. Tudo escuro em volta, mas, agachado, os pensamentos vinham claros. 
O outro gato estava mais uma vez sozinho, a chuva não havia cessado. O gato de casa é metido, tudo é dele, odeia a raça, pertence a outra. É chutado, se defende, mas em seguida perdoa. O outro não suportou, foi para baixo de um carro, de onde se vê a rua, a fresta, a oportunidade, e planeja, sai e retorna, até que tirem o carro. Existem outros e mais outros carros. Magro e molhado, olhando e se exercitando. Idade, alergias e outras doenças desconhecidas. Vigor que não se entende. Decisão sobre onde permanecer e o que fazer. Decisão de quando partir. O sangue do homem não parava, ardia. Entendia tudo, a cabeça calma, os músculos se preparando para uma súbita explosão.
       O sol já armado, a mulher reparou que o marido não estava na cama. Levantou-se e foi ao banheiro. Saiu e chamou por seu nome. Não teve resposta. Ele não tinha compromissos àquela hora, não naquele dia, cadê ele então pra ela terminar de dormir, aproveitar o resto da madrugada? A passagem para o telhado estava aberta. Eles nunca abriam. Ela chamou. Desceu os degraus. O gato amarelo estava como de costume. Apagou a luz acesa da sala. Seguiu para a garagem, vendo a porta aberta. Aproximou-se e passou os olhos pela rua, com seus primeiros movimentos. Não demorou muito, pois estava meio despida. Fechou a porta e a olhou daquele jeito, fechada, a claridade entrando pelo vidro. Era um novo dia. Voltou pra sala e sentou-se no sofá, com os cotovelos apoiados sobre os joelhos, sem saber o que pensar. O marido não estava mais lá. E em uma dessas noites de chuva, veremos esta mulher cruzando as ruas com pressa, para pegar o mercado antes de fechar. Um miado baixo se fará ouvir, interrompendo seu caminho. Ela chamará pelo bicho. A criatura encolhida entre o chão e o carro, eletrizada e atenta com as oportunidades, porá a cabeça para fora. As luzes dos carros se refletirão em seus olhos. A mulher reconhecerá seu marido. A criatura não reconhecerá aquela mulher.

3 comentários:

  1. Um conto que demanda leitura calma e atenta, Thiago. Talvez, sejam os gatos que escolhem onde vão viver. Os que moram na casa e ali ficam como território próprio, acolhem os donos da casa como amigos que fazem parte do mesmo ambiente, não? Sempre tive cachorros, entendo melhor, sei que se adaptam a um novo ambiente e fazem laços com os moradores (sejam pessoas e animais). Bem, vejo os gatos como bichos sedutores. Dá vontade de levar pra casa e cuidar, já tentei fazer amizade com felinos pelas ruas, mas nunca tive êxito.

    Abraços!

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  2. Ao se tentar levar o gato pra casa, ele é que te leva pra rua.

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  3. A melhor coisa pro artista é entrar no labirinto.

    Procuraste Poe na escuridão selvagem, mas no meio do percurso uma pedra te desviou. E eis o absurdo: o espírito de Kafka lhe possuindo usando a forma misteriosa e fugaz de um felino.

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