Dez pras onze
da noite e ele foi comprar pão. Um pão ou dois já estaria satisfeito, e ainda sobrava
pra depois. Caía uma chuva fina. Às vezes ela afinava ainda mais. Ele não
sentia. Os para-brisas dos carros estacionados e as poças no chão negro moviam-se,
assim mostravam que a chuva não parou. A grande avenida, a principal daquela
região, é formada por duas pistas separadas por um valão, com ruas transversais
e pequenas calçadas e passagens de pedestres. De dia, a avenida está cheia de
todo tipo de veículos e gente. Agora apresenta um vazio cortado pelo som de
pneus se arrastando no asfalto molhado. Não havia impedimentos no caminho do
homem para o mercado.
O homem foi para os lados em que ia fazer
alguma coisa boa, alimentar, sabia lá, não pensava em como faria. Andou olhando
pra trás. O bicho seguiu. Seguiu, contudo, sem deixar de parar diante de portas
ou de experimentar qualquer entrada pra lugares escuros, sem os postes e as
marquises que abrigavam do valão e da chuva. Estava displicente, sem querer
muito. O homem acreditava que se havia feito confiar, que o bicho vinha igual
amigo, contando tudo, parceiro de andadas na rua, selva em que o animal é que
sabe, usa como bem entende, sem qualquer sentimento. Encaminhava-se para o
lugar do homem. Aquela bacia é dele, será limpa quando estiver na hora, a hora
dele. Nesse esquadro, ele usa como entender. E ele entende o caminho, está
vindo mais ou menos em linha reta, na direção certa. Uma ambulância manobrava
para estacionar em cima da calçada, para ajudar na morte de alguém. A luz da
sirene refletiu-se vermelha nos olhos do gato, paralisando-o. O homem abriu
distancia e seu chamado o guiou pra fora dali.
Entraram na
rua escura em que morava o homem, carros estacionados em ambos os lados, muita
calma para o gato parar e observar. Entraram na varanda da casa. O gato farejou
as vidas dentro da casa acesa, a única da rua. Esperou sem se esconder, sabia o
que faria o homem, já conhecia seu retorno com uma vasilha cheia de comida.
Comida de gato. Caiu de boca, sem olhar antes, sem se concentrar, sem
disfarçar. Comeu até o último grão seco. O cachorro da casa espiava a porta da
garagem entreaberta. O gato sabia dele. Foi pego novamente pelas costas. O
homem abriu a porta, e rapidamente espantou o cachorro.
O gato foi posto no centro da sala, bem visível.
Não estava encolhido, começava a exploração. Antes que pudesse ver, já havia sentido
o cheiro do gato amarelo solar que morava ali. Correu para a cozinha, e o
outro, que ganhava em tamanho, à base de ração, o encurralou. Os miados
de ambos saíram como gritos de palavras horríveis e desesperadas. O dono
afastou seu gato com o pé. O branquinho, com a testa rajada de graxa, correu de
volta para a porta da garagem. O homem perdeu-os de vista. Os gritos
aumentaram. Eles estavam embolados, mas o corpo do amarelo era maior e podia
receber o pé que imprensava e chutava para tirá-lo do combate. O gato da casa
agarrou-se naquele pé, não para salvar-se, mas para defender-se com as unhas e
a boca cravada, fazendo surgir muito sangue. Quando deram por si, o gato branco
já não estava mais lá. No carro em frente também nada. Talvez ainda
estivesse próximo, pois havia sido demonstrado que o carro o acalmava. O homem
chamou uma vez. Não olhou embaixo daquele carro, ou dos outros.
Fechou a porta. Lavou o pé com a mangueira d’água, bastante água. O sangue não parava. Mal desviava o fluxo de água, ele novamente brotava. Quando a ferida acalmou um pouco, foi procurar seu gato. Fez um carinho no bicho bom, que não guarda remorso da agressão. Estava tudo bem.
Gatos são territoriais, aquilo não daria certo, mesmo que ele tentasse. Arranjar um canto pra cada um, ou separar por portas, apresentando-os aos poucos, tudo isso por um novo gato: infrutífero, não romperia a resistência entre eles, gatos não mudam. Muito trabalho, dias ocupados, pensou covardemente o homem. O sol ameaçava despontar. As horas passaram rápido. O homem pensava baixo, um pensamento por vez, evitando o atropelo. Tinha certeza, aquilo não era possível, não daria para os gatos conviverem. O sangue não tinha parado. Meteu-se embaixo do telhado, entre o telhado e a laje da casa, pela passagem complicada do segundo andar. Há um ano não limpava o lugar, a poeira deixava o chão negro. O sangue se transformava em lama. Estava suado, calmo. Tudo escuro em volta, mas, agachado, os pensamentos vinham claros.
Fechou a porta. Lavou o pé com a mangueira d’água, bastante água. O sangue não parava. Mal desviava o fluxo de água, ele novamente brotava. Quando a ferida acalmou um pouco, foi procurar seu gato. Fez um carinho no bicho bom, que não guarda remorso da agressão. Estava tudo bem.
Gatos são territoriais, aquilo não daria certo, mesmo que ele tentasse. Arranjar um canto pra cada um, ou separar por portas, apresentando-os aos poucos, tudo isso por um novo gato: infrutífero, não romperia a resistência entre eles, gatos não mudam. Muito trabalho, dias ocupados, pensou covardemente o homem. O sol ameaçava despontar. As horas passaram rápido. O homem pensava baixo, um pensamento por vez, evitando o atropelo. Tinha certeza, aquilo não era possível, não daria para os gatos conviverem. O sangue não tinha parado. Meteu-se embaixo do telhado, entre o telhado e a laje da casa, pela passagem complicada do segundo andar. Há um ano não limpava o lugar, a poeira deixava o chão negro. O sangue se transformava em lama. Estava suado, calmo. Tudo escuro em volta, mas, agachado, os pensamentos vinham claros.
O outro gato estava mais uma vez sozinho, a chuva não havia cessado. O gato de
casa é metido, tudo é dele, odeia a raça, pertence a outra. É chutado, se
defende, mas em seguida perdoa. O outro não suportou, foi para baixo de um
carro, de onde se vê a rua, a fresta, a oportunidade, e planeja, sai e retorna,
até que tirem o carro. Existem outros e mais outros carros. Magro e molhado, olhando
e se exercitando. Idade, alergias e outras doenças desconhecidas. Vigor que não
se entende. Decisão sobre onde permanecer e o que fazer. Decisão de quando
partir. O sangue do homem não parava, ardia. Entendia tudo, a cabeça calma, os músculos
se preparando para uma súbita explosão.
O sol já armado, a mulher reparou que o marido não estava na cama. Levantou-se e foi ao banheiro. Saiu e chamou por seu nome. Não teve resposta. Ele não tinha compromissos àquela hora, não naquele dia, cadê ele então pra ela terminar de dormir, aproveitar o resto da madrugada? A passagem para o telhado estava aberta. Eles nunca abriam. Ela chamou. Desceu os degraus. O gato amarelo estava como de costume. Apagou a luz acesa da sala. Seguiu para a garagem, vendo a porta aberta. Aproximou-se e passou os olhos pela rua, com seus primeiros movimentos. Não demorou muito, pois estava meio despida. Fechou a porta e a olhou daquele jeito, fechada, a claridade entrando pelo vidro. Era um novo dia. Voltou pra sala e sentou-se no sofá, com os cotovelos apoiados sobre os joelhos, sem saber o que pensar. O marido não estava mais lá. E em uma dessas noites de chuva, veremos esta mulher cruzando as ruas com pressa, para pegar o mercado antes de fechar. Um miado baixo se fará ouvir, interrompendo seu caminho. Ela chamará pelo bicho. A criatura encolhida entre o chão e o carro, eletrizada e atenta com as oportunidades, porá a cabeça para fora. As luzes dos carros se refletirão em seus olhos. A mulher reconhecerá seu marido. A criatura não reconhecerá aquela mulher.
O sol já armado, a mulher reparou que o marido não estava na cama. Levantou-se e foi ao banheiro. Saiu e chamou por seu nome. Não teve resposta. Ele não tinha compromissos àquela hora, não naquele dia, cadê ele então pra ela terminar de dormir, aproveitar o resto da madrugada? A passagem para o telhado estava aberta. Eles nunca abriam. Ela chamou. Desceu os degraus. O gato amarelo estava como de costume. Apagou a luz acesa da sala. Seguiu para a garagem, vendo a porta aberta. Aproximou-se e passou os olhos pela rua, com seus primeiros movimentos. Não demorou muito, pois estava meio despida. Fechou a porta e a olhou daquele jeito, fechada, a claridade entrando pelo vidro. Era um novo dia. Voltou pra sala e sentou-se no sofá, com os cotovelos apoiados sobre os joelhos, sem saber o que pensar. O marido não estava mais lá. E em uma dessas noites de chuva, veremos esta mulher cruzando as ruas com pressa, para pegar o mercado antes de fechar. Um miado baixo se fará ouvir, interrompendo seu caminho. Ela chamará pelo bicho. A criatura encolhida entre o chão e o carro, eletrizada e atenta com as oportunidades, porá a cabeça para fora. As luzes dos carros se refletirão em seus olhos. A mulher reconhecerá seu marido. A criatura não reconhecerá aquela mulher.
Um conto que demanda leitura calma e atenta, Thiago. Talvez, sejam os gatos que escolhem onde vão viver. Os que moram na casa e ali ficam como território próprio, acolhem os donos da casa como amigos que fazem parte do mesmo ambiente, não? Sempre tive cachorros, entendo melhor, sei que se adaptam a um novo ambiente e fazem laços com os moradores (sejam pessoas e animais). Bem, vejo os gatos como bichos sedutores. Dá vontade de levar pra casa e cuidar, já tentei fazer amizade com felinos pelas ruas, mas nunca tive êxito.
ResponderExcluirAbraços!
Ao se tentar levar o gato pra casa, ele é que te leva pra rua.
ResponderExcluirA melhor coisa pro artista é entrar no labirinto.
ResponderExcluirProcuraste Poe na escuridão selvagem, mas no meio do percurso uma pedra te desviou. E eis o absurdo: o espírito de Kafka lhe possuindo usando a forma misteriosa e fugaz de um felino.