Ela tem mais
de cinquenta anos. Seu rosto não os esconde, mas também não diz. É bonita. Não
bonita demais. Apenas bonita, um pouco mais do que as outras mulheres, qualquer
que seja a idade delas. Também é um pouco mais alta. Veio de uma cidadezinha do
Rio Grande do Sul. É bonita, mas não chama atenção nenhuma pelo corpo. Está no
Rio há seis meses. Trabalha em uma escola de crianças pequenas, sem função
definida. Não é professora, mas de vez em quando reforça o aprendizado de uma
letra, orienta a amarração de um sapato, dá de aviãozinho na boca de alguém, ou
pede para que comam por si mesmas. Não é cozinheira, embora volta e meia seja
vista descascando e picando cenoura e chuchu. Quando só tem ela para fazer isso,
limpa a mesa e o chão que alguma criança sujou. De constante só a função de
abrir e fechar a porta aos responsáveis que vêm deixar ou buscar as crianças.
Abre e fecha a porta também para mim, que trabalho lá e não sou professor,
cozinheiro, faxineiro ou porteiro, mas de vez em quando me meto em alguma coisa
ou outra, pra agradar.
“Bom dia”.
“Bom dia”. “Tá calor.” “É, tá calor”. Tenho essa distância com quase todas. Só
dá mulher lá, mais um homem e eu. Falo um pouco mais do que isso com uma, com outra,
e ainda assim ocasionalmente. Ao ver os aviõezinhos daquela mulher, disse a
ela: “ele tem que aprender a comer, na escola as crianças vêm pra aprender as coisas”. Ela concordou,
é respeito pelo meu estudo. A escola tem muita coisa pra fazer, e ela encara, sem
se dar o trabalho de discutir comigo. Então, não é bem respeito pelo meu estudo.
Ela é sacudida, se reclamam aqui, arruma logo outra função toda dela ali.
“Ficar discutindo com rapaz?”, penso por ela.
Certo dia eu ia
descendo por um caminho diferente do habitual, que se toma numa bifurcação próxima
da escola. Era minha segunda vez por ali. Ao chegar em um praça, dei com ela
atrás de um carrinho de churrasco. Apareci no seu campo de visão, ao mesmo
tempo em que ela apareceu no meu. Os olhos dela se assustaram, e se arrastaram
em mim, durante um tempo. Não tive reação, nem de desviar. Ela gelou, eu sei
que gelei. Os corpos, contudo, continuaram o que estavam fazendo. Ela não usava
mais o uniforme. Vinte minutos haviam se passado do fechamento da escola, e ela
alta, se sobressaindo atrás do braseiro, abanando sem parar os espetos quase
prontos. Com a outra mão levantava o saco de carvão para alguém. Pessoas com
suas latinhas e conversas em volta.
Eu queria
cumprimentá-la discretamente. Ela não me olhou por uma segunda vez. A
quantidade de coisas que ela tinha pra cuidar disfarçava o frio escalando os
nervos. A mão tremeu segurando o carvão. O rosto dela era bem diferente do das
outras pessoas, branco, petrificado e de olhos frios.
Desci a
escadaria do lado da praça, como já pretendia fazer. “Como vai ser quando
encontrá-la na escola?”, fiquei me perguntando, perguntei pra minha mulher. “Não
fala nada pra ela”, fui aconselhado. “Eu te vi”, “eu também te vi”. Por que não
dizer? Tudo bem!
Ela vende
churrasco e ficou com vergonha de mim. Ninguém da escola passa por ali. Porque diabos
não aproveita a noite pra estudar, pra não precisar mais ficar no churrasco e
na escola? Deve estar cansada, chega em casa e já tem que sair pra vender
churrasco à noite, tanto trabalho e ela pegando de uma vez pra fazer. É com ela
mesma.
No outro dia, quando retornei à
escola, outra pessoa estava à porta. Fui fazer as minhas coisas sem pensar
naquele assunto, no que dizer, não ia dizer nada. Mas passaria problema ao cumprimentá-la?
Ela não ia querer falar, seria ruim pra ela mesma se falasse, vendedora de
churrasquinho. Eu estava só de passagem, não tinha nada a ver.
Será que não
posso só comentar, e rapidamente tranquilizá-la? Iria deixá-la calma, sem
motivos pra mal estar. Sabia como fazer isso. Finalmente nos esbarramos. Cumprimentei
sem incomodar seu ritmo de trabalho, mas sei que a fiz lembrar-se daquela noite,
silenciosamente. Não houve conversa, mas posso dizer inteirinha a história dela: mais de cinquenta.
Acabou um namoro há pouco. Não teve filhos, e não estudou muito. Desde nova trabalhando
em barracas de comida em festas típicas. Lá no sul tem muito. E trabalhou em
comércio, caixa de supermercado, é meio nervosa, prática. Conta logo o troco e
entrega pro cliente. Mesmo antes de consumir a fila, aceita o papo dos homens
bebendo cerveja. E bebe o seu copinho. Não ia além com eles, desde os vinte já
tinha um marido. Casamento após namoro, certo, com casa, esperando trabalhar um
pouco pra entrar na faculdade. Acabou passando o tempo e não estudou. Atrás dos
balcões era só sorriso e charme para as conversas, dando a todos as mesmas
respostas, sem poder elevar muito os assuntos. O frio era daquele jeito mesmo,
assim como as diferentes eleições. A boa era beber outra, mais outra, até o fim
da noite. Seu corpo balançava enquanto a boca repetia o não. Mantinha-se para a
casa e o marido.
As famílias dos
dois se conheciam desde bem antes, e passaram a se visitar mais. Ambos largavam
seus trabalhos às 18 horas do sábado e iam para a região de roça, onde moravam
os avós dele. Os velhos tinham-na exatamente como da família, alguém que contava
sobre o seu trabalho, sem preocupação, e eles ouviam se entreolhando, sem
comentar. A cidade era diferente da roça, a mulher trabalhava com o público e
passava por tudo aquilo.
O casamento terminou antes que
completasse dez anos, para desgosto de todos. Nunca ficaram muito claros os
motivos: não era ciúmes dela, que não os tinha, nem dele. Não se sabe se ela o
traiu, o que se sabe é que ficou abafado. A separação foi sem grande
estardalhaço, mas ficou difícil para ela continuar no mesmo trabalho. Empregou-se
numa farmácia em outro bairro. Um ou outro a conhecia, mas, por ser um novo
ambiente, não chegava a se formar uma nuvem de comentários acerca do casamento
e do prejuízo moral dela em se separar. As conversas miúdas não cresciam até
certo limite.
Ela estava
mais solta para as situações novas, e as desejando. Via pouco a mãe, que a
amava e não falava muito sobre as mudanças na vida da filha. Ria e jogava
aqueles olhos claros para os homens mais jovens, e à noite frequentemente voltava
com a companhia de um deles. Paravam num bar para as últimas. Os passantes a
conheciam. Ela falava pouco de si, e não se importava que falassem. Levantava o
copo com um sorrisinho nos lábios finos. Iam pra porta da casa dela, o beijo
acontecia logo, o homem pegava coragem. No dia seguinte ele entrava naquela
casa. Trepavam na cama arrumada. Os homens não voltavam depois, não até passar
um tempo. Ela seguia fazendo isso com os demais, até que com um deles engatou um
namoro. É, ela tentou de novo o que com ela não dá certo.
Fez uma
tatuagem no pescoço depois da idade. Pra mim ela queima todos os cartuchos da
vida, tatuando um momento que ela sabe breve, na ilusão de fazê-lo durar. Ela própria
não tem duração. Da mesma forma que trocou uma cidade por outra, e um homem por
nenhum, ou alguns, veio para o Rio. As coisas se ajeitaram depressa, uma ex-professora
da escola conseguiu uma posição pra ela. Alugou um quarto a pouca distancia.
Fiquei sabendo que ela quer trocar de casa. Vi seu churrasquinho, me surpreendi.
Ela foi sagaz em montar aquela barraca pra ganhar um troco à noite.
A escola e a
barraca ela ia levando, mas ela tem que deixar o churrasquinho de lado e entrar
numa faculdade, pra depois conseguir um emprego melhor. Foi o que eu fiz, não
trabalhei com nada até ter uma profissão pronta e os lugares esperando eu me
oferecer. As pessoas têm que querer melhorar. Churrasquinho dá uns cem reais
por dia, vejo o bolo de notas nas mãos dos vendedores, mas a gente tem que
querer mais da vida, ter uma profissão. Se ganha pouco é só no começo. A coisa
melhora. Devagar devagar, vai melhorar pra mim, só que eu estudei, me vêem no
meu trabalho e me sinto bem. Se eu estivesse atrás de uma barraca, estaria com
vergonha. Com um bolo de notas no bolso, trabalhando pra caralho e preferindo
que não me vissem. Na escola ela gosta das crianças, se preocupa com elas, coloca
gelo no galo de um, ri do jeito de outro. Igual na barraca, feliz servindo os
homens de comida e bebida.
Daqui a pouco ela some, as pessoas vão ver. Só
vai ser chato quando encontrarem-na fazendo a mesma coisa, em outro lugar. Vai
pegar aquilo tudo e se mudar pra mais adiante. Aí sim eu vou atrás dela,
“porque você saiu da escola? Aonde está agora?”. Escondo minhas impressões, e
já que estou ali, ela se abre, nem se preocupa em não confiar em mim. Pego uma
cerveja bem gelada, vou bebendo e concordando. Ali eu sou cliente dela. Ela não
está mais em escola, tá à procura, mas tá fora. É toda do churrasquinho, e me
serve. Sou legal pra ela, não me intrometo. O que eu penso está guardado. Mais
um ou dois homens enfiam na conversa as coisas que aconteceram com eles. Ela me
apresenta, rindo, profissional para eles consultarem à vontade. Todos riem, me
sinto numa boa e um otário, “o que ele acha que sabe? Como vai correr daqui?”,
tendo que me cuidar.
Ela falava
perto de mim. Seu bafo alcoólico era quase o ar todo que eu respirava. Eu não
desviava o nariz para um ar mais livre, deixava-me lá, encarando a conversa de
que realmente era muito difícil aquilo, ficar até tarde na rua aguentando as
chateações de às vezes, carregando o carrinho pesado para a praça e para casa,
passando a manhã cortando molho e carne. Não precisava cumprir ordem de ninguém,
era a chefe dela mesma. Tinha amigos, uns caras que gostavam dela, bebiam bem.
Mulher não, que mulher fala muito, acha ruim o jeito dela de olhar pros homens
com os olhos avermelhados de cerveja. Ria pra mim, até com os dentes fechados
no sorriso o hálito doce e azedo saía. Outros homens chegaram, saíram, ela sem
me perder e deixar ir. Mas cinco minutos eu ia encontrar uma brecha pra sair,
que estava tarde.
Em certo
momento, senti bem presente na minha língua o gosto daquele ar. Um segundo
antes o gosto não estava lá, só o da minha cerveja com baixa fermentação. Agora
minha saliva era grossa e azeda, meus lábios adocicados e relaxados, como se
uma cobra houvesse me pego. A mulher continuava feliz, passou a língua nos lábios muito finos e
pintados de rosa, encarquilhados. Podia virar-se à esquerda e à direita, muito
atenta aos pedidos e alegre para os outros assuntos. Sabia, contudo, que eu
ficaria parado ali. Tinha cuidado e apetite por mim. Minha cabeça ficou leve, toda a porção correspondente à face, também os
ouvidos, pediam mais uma cerveja e mais da atenção dela, sem pensar. O resto do
meu corpo estava paralisado. Era apenas um saco vazio para as ramificações da
cabeça.