domingo, 16 de dezembro de 2012

O eu e o outro

'Transfiguração', fotografia de Sócrates Magno Torres 



Imaginem um quadro representando a divisão entre duas pessoas feita por um corte  emaranhado de arame farpado. Arame farpado! Entre o eu e o outro há tensões que tornam os laços, muitas vezes, impossíveis de serem feitos. Sinto que a obra transmite a dor provocada pelas relações humanas. 
Eis que há entre o eu e o outro alguma demarcação de até onde se pode ir. Um dos males da civilização, dos entraves da felicidade: saber quando se pode atravessar ou permitir que atravessem. Entre as farpas do eu e do outro há espaços que podem ser feitos sem grandes arranhões.
Uma travessia que se faz sem dor demonstra afinidade. Ou, então, uma aprendizagem na convivência em que as diferenças foram superadas, uma soma. Outras vezes, o adentrar pelos vazios do outro pode ter sido doloroso, causado alguns arranhões, e ainda assim realizado um bom encontro.
Um bom encontro acontece quando é possível atravessar os espaços sem grandes dores ou sem “ultrapassar os limites” como se dizemos no cotidiano. É quando se descobre um caminho entre o eu e o outro que se pode ir e vir com suavidade e graça. Aí, nesse ponto, podemos dizer: amizade. Amigos são aqueles que se divertem entre os vazios do outro, e preenchem sem invadir os centros nervosos do outro ou quando esbarram neles não se cortam, porque há um cuidado e sintonia que permitem que a travessia seja feita. 

sábado, 1 de dezembro de 2012

Bobinho.




          Ela tem mais de cinquenta anos. Seu rosto não os esconde, mas também não diz. É bonita. Não bonita demais. Apenas bonita, um pouco mais do que as outras mulheres, qualquer que seja a idade delas. Também é um pouco mais alta. Veio de uma cidadezinha do Rio Grande do Sul. É bonita, mas não chama atenção nenhuma pelo corpo. Está no Rio há seis meses. Trabalha em uma escola de crianças pequenas, sem função definida. Não é professora, mas de vez em quando reforça o aprendizado de uma letra, orienta a amarração de um sapato, dá de aviãozinho na boca de alguém, ou pede para que comam por si mesmas. Não é cozinheira, embora volta e meia seja vista descascando e picando cenoura e chuchu. Quando só tem ela para fazer isso, limpa a mesa e o chão que alguma criança sujou. De constante só a função de abrir e fechar a porta aos responsáveis que vêm deixar ou buscar as crianças. Abre e fecha a porta também para mim, que trabalho lá e não sou professor, cozinheiro, faxineiro ou porteiro, mas de vez em quando me meto em alguma coisa ou outra, pra agradar.
“Bom dia”. “Bom dia”. “Tá calor.” “É, tá calor”. Tenho essa distância com quase todas. Só dá mulher lá, mais um homem e eu. Falo um pouco mais do que isso com uma, com outra, e ainda assim ocasionalmente. Ao ver os aviõezinhos daquela mulher, disse a ela: “ele tem que aprender a comer, na escola as crianças vêm pra aprender as coisas”. Ela concordou, é respeito pelo meu estudo. A escola tem muita coisa pra fazer, e ela encara, sem se dar o trabalho de discutir comigo. Então, não é bem respeito pelo meu estudo. Ela é sacudida, se reclamam aqui, arruma logo outra função toda dela ali. “Ficar discutindo com rapaz?”, penso por ela.
Certo dia eu ia descendo por um caminho diferente do habitual, que se toma numa bifurcação próxima da escola. Era minha segunda vez por ali. Ao chegar em um praça, dei com ela atrás de um carrinho de churrasco. Apareci no seu campo de visão, ao mesmo tempo em que ela apareceu no meu. Os olhos dela se assustaram, e se arrastaram em mim, durante um tempo. Não tive reação, nem de desviar. Ela gelou, eu sei que gelei. Os corpos, contudo, continuaram o que estavam fazendo. Ela não usava mais o uniforme. Vinte minutos haviam se passado do fechamento da escola, e ela alta, se sobressaindo atrás do braseiro, abanando sem parar os espetos quase prontos. Com a outra mão levantava o saco de carvão para alguém. Pessoas com suas latinhas e conversas em volta.
Eu queria cumprimentá-la discretamente. Ela não me olhou por uma segunda vez. A quantidade de coisas que ela tinha pra cuidar disfarçava o frio escalando os nervos. A mão tremeu segurando o carvão. O rosto dela era bem diferente do das outras pessoas, branco, petrificado e de olhos frios.
Desci a escadaria do lado da praça, como já pretendia fazer. “Como vai ser quando encontrá-la na escola?”, fiquei me perguntando, perguntei pra minha mulher. “Não fala nada pra ela”, fui aconselhado. “Eu te vi”, “eu também te vi”. Por que não dizer? Tudo bem!
Ela vende churrasco e ficou com vergonha de mim. Ninguém da escola passa por ali. Porque diabos não aproveita a noite pra estudar, pra não precisar mais ficar no churrasco e na escola? Deve estar cansada, chega em casa e já tem que sair pra vender churrasco à noite, tanto trabalho e ela pegando de uma vez pra fazer. É com ela mesma.
            No outro dia, quando retornei à escola, outra pessoa estava à porta. Fui fazer as minhas coisas sem pensar naquele assunto, no que dizer, não ia dizer nada. Mas passaria problema ao cumprimentá-la? Ela não ia querer falar, seria ruim pra ela mesma se falasse, vendedora de churrasquinho. Eu estava só de passagem, não tinha nada a ver.
Será que não posso só comentar, e rapidamente tranquilizá-la? Iria deixá-la calma, sem motivos pra mal estar. Sabia como fazer isso. Finalmente nos esbarramos. Cumprimentei sem incomodar seu ritmo de trabalho, mas sei que a fiz lembrar-se daquela noite, silenciosamente. Não houve conversa, mas posso dizer inteirinha a história dela: mais de cinquenta. Acabou um namoro há pouco. Não teve filhos, e não estudou muito. Desde nova trabalhando em barracas de comida em festas típicas. Lá no sul tem muito. E trabalhou em comércio, caixa de supermercado, é meio nervosa, prática. Conta logo o troco e entrega pro cliente. Mesmo antes de consumir a fila, aceita o papo dos homens bebendo cerveja. E bebe o seu copinho. Não ia além com eles, desde os vinte já tinha um marido. Casamento após namoro, certo, com casa, esperando trabalhar um pouco pra entrar na faculdade. Acabou passando o tempo e não estudou. Atrás dos balcões era só sorriso e charme para as conversas, dando a todos as mesmas respostas, sem poder elevar muito os assuntos. O frio era daquele jeito mesmo, assim como as diferentes eleições. A boa era beber outra, mais outra, até o fim da noite. Seu corpo balançava enquanto a boca repetia o não. Mantinha-se para a casa e o marido.
As famílias dos dois se conheciam desde bem antes, e passaram a se visitar mais. Ambos largavam seus trabalhos às 18 horas do sábado e iam para a região de roça, onde moravam os avós dele. Os velhos tinham-na exatamente como da família, alguém que contava sobre o seu trabalho, sem preocupação, e eles ouviam se entreolhando, sem comentar. A cidade era diferente da roça, a mulher trabalhava com o público e passava por tudo aquilo.
           O casamento terminou antes que completasse dez anos, para desgosto de todos. Nunca ficaram muito claros os motivos: não era ciúmes dela, que não os tinha, nem dele. Não se sabe se ela o traiu, o que se sabe é que ficou abafado. A separação foi sem grande estardalhaço, mas ficou difícil para ela continuar no mesmo trabalho. Empregou-se numa farmácia em outro bairro. Um ou outro a conhecia, mas, por ser um novo ambiente, não chegava a se formar uma nuvem de comentários acerca do casamento e do prejuízo moral dela em se separar. As conversas miúdas não cresciam até certo limite.
Ela estava mais solta para as situações novas, e as desejando. Via pouco a mãe, que a amava e não falava muito sobre as mudanças na vida da filha. Ria e jogava aqueles olhos claros para os homens mais jovens, e à noite frequentemente voltava com a companhia de um deles. Paravam num bar para as últimas. Os passantes a conheciam. Ela falava pouco de si, e não se importava que falassem. Levantava o copo com um sorrisinho nos lábios finos. Iam pra porta da casa dela, o beijo acontecia logo, o homem pegava coragem. No dia seguinte ele entrava naquela casa. Trepavam na cama arrumada. Os homens não voltavam depois, não até passar um tempo. Ela seguia fazendo isso com os demais, até que com um deles engatou um namoro. É, ela tentou de novo o que com ela não dá certo.
Fez uma tatuagem no pescoço depois da idade. Pra mim ela queima todos os cartuchos da vida, tatuando um momento que ela sabe breve, na ilusão de fazê-lo durar. Ela própria não tem duração. Da mesma forma que trocou uma cidade por outra, e um homem por nenhum, ou alguns, veio para o Rio. As coisas se ajeitaram depressa, uma ex-professora da escola conseguiu uma posição pra ela. Alugou um quarto a pouca distancia. Fiquei sabendo que ela quer trocar de casa. Vi seu churrasquinho, me surpreendi. Ela foi sagaz em montar aquela barraca pra ganhar um troco à noite.
A escola e a barraca ela ia levando, mas ela tem que deixar o churrasquinho de lado e entrar numa faculdade, pra depois conseguir um emprego melhor. Foi o que eu fiz, não trabalhei com nada até ter uma profissão pronta e os lugares esperando eu me oferecer. As pessoas têm que querer melhorar. Churrasquinho dá uns cem reais por dia, vejo o bolo de notas nas mãos dos vendedores, mas a gente tem que querer mais da vida, ter uma profissão. Se ganha pouco é só no começo. A coisa melhora. Devagar devagar, vai melhorar pra mim, só que eu estudei, me vêem no meu trabalho e me sinto bem. Se eu estivesse atrás de uma barraca, estaria com vergonha. Com um bolo de notas no bolso, trabalhando pra caralho e preferindo que não me vissem. Na escola ela gosta das crianças, se preocupa com elas, coloca gelo no galo de um, ri do jeito de outro. Igual na barraca, feliz servindo os homens de comida e bebida.
 Daqui a pouco ela some, as pessoas vão ver. Só vai ser chato quando encontrarem-na fazendo a mesma coisa, em outro lugar. Vai pegar aquilo tudo e se mudar pra mais adiante. Aí sim eu vou atrás dela, “porque você saiu da escola? Aonde está agora?”. Escondo minhas impressões, e já que estou ali, ela se abre, nem se preocupa em não confiar em mim. Pego uma cerveja bem gelada, vou bebendo e concordando. Ali eu sou cliente dela. Ela não está mais em escola, tá à procura, mas tá fora. É toda do churrasquinho, e me serve. Sou legal pra ela, não me intrometo. O que eu penso está guardado. Mais um ou dois homens enfiam na conversa as coisas que aconteceram com eles. Ela me apresenta, rindo, profissional para eles consultarem à vontade. Todos riem, me sinto numa boa e um otário, “o que ele acha que sabe? Como vai correr daqui?”, tendo que me cuidar.
Ela falava perto de mim. Seu bafo alcoólico era quase o ar todo que eu respirava. Eu não desviava o nariz para um ar mais livre, deixava-me lá, encarando a conversa de que realmente era muito difícil aquilo, ficar até tarde na rua aguentando as chateações de às vezes, carregando o carrinho pesado para a praça e para casa, passando a manhã cortando molho e carne. Não precisava cumprir ordem de ninguém, era a chefe dela mesma. Tinha amigos, uns caras que gostavam dela, bebiam bem. Mulher não, que mulher fala muito, acha ruim o jeito dela de olhar pros homens com os olhos avermelhados de cerveja. Ria pra mim, até com os dentes fechados no sorriso o hálito doce e azedo saía. Outros homens chegaram, saíram, ela sem me perder e deixar ir. Mas cinco minutos eu ia encontrar uma brecha pra sair, que estava tarde.
Em certo momento, senti bem presente na minha língua o gosto daquele ar. Um segundo antes o gosto não estava lá, só o da minha cerveja com baixa fermentação. Agora minha saliva era grossa e azeda, meus lábios adocicados e relaxados, como se uma cobra houvesse me pego. A mulher continuava feliz, passou a língua nos lábios muito finos e pintados de rosa, encarquilhados. Podia virar-se à esquerda e à direita, muito atenta aos pedidos e alegre para os outros assuntos. Sabia, contudo, que eu ficaria parado ali. Tinha cuidado e apetite por mim. Minha cabeça ficou leve, toda a porção correspondente à face, também os ouvidos, pediam mais uma cerveja e mais da atenção dela, sem pensar. O resto do meu corpo estava paralisado. Era apenas um saco vazio para as ramificações da cabeça.