quinta-feira, 15 de novembro de 2012

BREU




Do lado de fora,nem consegui imaginar o que se passava por dentro. Havia gente na borda da festa. Gente com um rosto plácido, quase angelical. Um sorriso levemente luzia nos olhos daquela gente. Olhei a todos que ali estavam, embora não tenha gravado um traço de rosto qualquer. Toda minha memória antes enciclopédica, fragmentou-se a partir do momento que atravessei a porta, passando pelas duas gárgulas de punhos antipáticos, impávidas e orgulhosas, que sem a menor cerimônia me revistaram.
Entrei no recinto. Um barulho inicial desceu até mim como cafeína. Despertei para um sono inquieto. Meu corpo profanado e castigado pelo cotidiano aos poucos foi se eletrificando. Bem aos poucos. De modo que só percebi  a diferença desse estado para o anterior quando já estava em outra voltagem. O faiscar das luzes ajudou a me embalar no sono desperto e a visão de rostos tão infinitos embolou minha percepção. Eram tantas luzes a romper minha retina, que o que era verdadeiramente claro(?) me fazia ver escuro. Meus olhos fatigados só procuravam o breu. No piscar de cada milésimo de segundo, meu espírito, se é que este nome seja o mais conveniente para tal designação, se confortava. Meu corpo, ao contrário, não sentia conforto, nem almejava a comodidade. Meu corpo me tomava numa dança obscura e me arrastava...
Nas paredes, as sombras graciosas e confessas, omitiam ao mundo o que se fazia nas penumbras. As sombras refrescantes, cheias de alento e despudor - sombras protetoras e guardiãs - não como o útero trevoso e materno,pois maternidade, apesar de proteção é censura e castração. As sombras das paredes são como tias distantes que ao invés de reforçarem a catequese, sem querer te ajudam a quebrar o decoro. E nessas trevas confusas de seios, batons, bocas, dentes, peles e todas as dimensões, todas as simetrias e assimetrias, tudo que se pode chamar de contato, tudo, tudo se borrava, se pichava, se levava e ia. Eu nada via. Estava cada vez mais acorrentado à cegueira santa e luminosa que guiava meus sentidos.
Penetrei uma porta que me levou a um labirinto ainda mais profuso e enigmático. Aqui faço uma nota: *para  os bons de conduta, imaculados e distintos, encontrei  o umbral mais repugnante e fétido, travestido por uma figura feminina ávida por sangue e miséria, um cenário dantesco; em contrapartida, aos cínicos (como eu talvez), o ambiente era um paraíso de anjos decaídos prontos para reascenderem ao Céu. O firmamento pode ser azulado para os que estão do lado externo. Mas para os fortes,tenazes e eleitos, ele era a cor escura mais escura que pode haver. Um escuro inominável, desconhecido e não-catalogado. Um escuro  que está dentro de nós (será?).*
Fui adentrando a fenda  sombria, me encrespando em relvas de gente, sons e grunhidos. Miados, chiados, vozes sussurradas nos entreouvidos. Movimentos, semblantes, vibrações rasteiras. Pequenas risadas. Golfadas. Smashs! Sibilações. Cócegas. Sons sutis de dentes e peles e dentes novamente. Tamancos quebrando o falso silêncio. Saltos agulhas riscando o  chão e se encontrando com  pequenas multidões de tênis, sapatos e outros saltos. Todo mundo de sobreaviso. Todos sendo sobressaltados. Todos dormindo.
Perdi todas as noções. O tempo era outro. Uma ampulheta específica e única marcava aquilo que eu entendia como tempo. Não menos indefinido e obscuro era o espaço. Havia um vácuo. Altura, largura e profundidade se misturavam e brincavam conosco, como se fossem crianças mentirosas e trolladoras. Não havia certeza nenhuma. Nossos corpos eram nossos astrolábios. Haviam polos magnéticos,é certo. E só. Senso nenhum havia e nem poderia.
Procurei uma série de coisas e uma delas se chamava Beleza. A Beleza total, verdadeira e derradeira. Todavia, descobri sem querer, que naquele mundo, a Beleza era vaga,(talvez não só naquele mundo, mas neste que me encontro cá agora).  Como ela era invisível, meus membros farejavam-na. Eram eles que me diziam o que era belo ou horrendo. Compreendi  que a Beleza vaga por aí e acolá. Mas ainda assim a desejo, mesmo que ela serpenteie de forma ligeira, superficial e irregular. Há certamente eternidade no que é efêmero. Quero a eternidade das frações de segundos.
O escuro total revelou a minha divindade. Sou o herói. Sou Teseu e Minotauro. Aquele que expande e aquele que destrói. Só nas trevas conseguimos sê-los. Fora dela nos bipartimos e fragmentamos. Percorro o escuro no intuito de libertar aquilo que mais protejo, e aprisionar meus sombrios desejos. Para me libertar e me afugentar . O fio inicial que me conduziu, acabei por superá-lo. Retesei-o  e depois, sem o mínimo remorso, fiz o corte. Alcancei o inalcançável. Uma parte disso consegui trazer para o mundo de fora, da luz, da certeza. Infelizmente, muito do que ganhei, tive de ofertar às sombras. Sacrifiquei para conseguir retornar. Não que a volta fosse mais nobre que a partida, mas a covardia também faz parte de mim, confesso.
O nome da descoberta fica guardado. Se me foi revelado, algo me fez apagar da mente. Mais importante que conhecer a nomeação de algo, é ter na pele a sensação do que foi. E esta memória específica nunca se apagará, pois  no universo que estive, não fui apenas herói. Fui mais que isso. Fui o rei.

3 comentários:

  1. No escuro as mãos vêm brincar conosco. Elas nos fazem reis, deuses, o diabo, o caralho. São as melhores companheiras de dança. E como dançamos gostoso!

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  2. Complexo e inusitado breu!
    Gosto da riqueza na descrição dos detalhes em seu conto.

    Abraços!

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  3. Adorei,realmente o escuro é outro mundo e sentimos nele muitas outras sensações.Gostei da riqueza dos detalhes também.

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