Do lado de fora,nem consegui
imaginar o que se passava por dentro. Havia gente na borda da festa. Gente com
um rosto plácido, quase angelical. Um sorriso levemente luzia nos olhos daquela gente. Olhei a todos
que ali estavam, embora não tenha gravado um traço de rosto qualquer. Toda
minha memória antes enciclopédica, fragmentou-se a partir do momento que
atravessei a porta, passando pelas duas gárgulas de punhos antipáticos,
impávidas e orgulhosas, que sem a menor cerimônia me revistaram.
Entrei no recinto. Um barulho
inicial desceu até mim como cafeína. Despertei para um sono inquieto. Meu corpo
profanado e castigado pelo cotidiano aos poucos foi se eletrificando. Bem aos
poucos. De modo que só percebi a
diferença desse estado para o anterior quando já estava em outra voltagem. O
faiscar das luzes ajudou a me embalar no sono desperto e a visão de rostos tão
infinitos embolou minha percepção. Eram tantas luzes a romper minha retina, que
o que era verdadeiramente claro(?) me fazia ver escuro. Meus olhos fatigados só
procuravam o breu. No piscar de cada milésimo de segundo, meu espírito, se é
que este nome seja o mais conveniente para tal designação, se confortava. Meu
corpo, ao contrário, não sentia conforto, nem almejava a comodidade. Meu corpo
me tomava numa dança obscura e me arrastava...
Nas paredes, as sombras graciosas
e confessas, omitiam ao mundo o que se fazia nas penumbras. As sombras
refrescantes, cheias de alento e despudor - sombras protetoras e guardiãs - não
como o útero trevoso e materno,pois maternidade, apesar de proteção é censura e
castração. As sombras das paredes são como tias distantes que ao invés de
reforçarem a catequese, sem querer te ajudam a quebrar o decoro. E nessas trevas
confusas de seios, batons, bocas, dentes, peles e todas as dimensões, todas as
simetrias e assimetrias, tudo que se pode chamar de contato, tudo, tudo se
borrava, se pichava, se levava e ia. Eu nada via. Estava cada vez mais
acorrentado à cegueira santa e luminosa que guiava meus sentidos.
Penetrei uma porta que me levou a
um labirinto ainda mais profuso e enigmático. Aqui faço uma nota: *para os bons de conduta, imaculados e distintos,
encontrei o umbral mais repugnante e
fétido, travestido por uma figura feminina ávida por sangue e miséria, um
cenário dantesco; em contrapartida, aos cínicos (como eu talvez), o ambiente
era um paraíso de anjos decaídos prontos para reascenderem ao Céu. O firmamento
pode ser azulado para os que estão do lado externo. Mas para os fortes,tenazes
e eleitos, ele era a cor escura mais escura que pode haver. Um escuro
inominável, desconhecido e não-catalogado. Um escuro que está dentro de nós (será?).*
Fui adentrando a fenda sombria, me encrespando em relvas de gente, sons
e grunhidos. Miados, chiados, vozes sussurradas nos entreouvidos. Movimentos,
semblantes, vibrações rasteiras. Pequenas risadas. Golfadas. Smashs!
Sibilações. Cócegas. Sons sutis de dentes e peles e dentes novamente. Tamancos
quebrando o falso silêncio. Saltos agulhas riscando o chão e se encontrando com pequenas multidões de tênis, sapatos e outros
saltos. Todo mundo de sobreaviso. Todos sendo sobressaltados. Todos dormindo.
Perdi todas as noções. O tempo
era outro. Uma ampulheta específica e única marcava aquilo que eu entendia como
tempo. Não menos indefinido e obscuro era o espaço. Havia um vácuo. Altura,
largura e profundidade se misturavam e brincavam conosco, como se fossem
crianças mentirosas e trolladoras. Não havia certeza nenhuma. Nossos corpos
eram nossos astrolábios. Haviam polos magnéticos,é certo. E só. Senso nenhum
havia e nem poderia.
Procurei uma série de coisas e
uma delas se chamava Beleza. A Beleza total, verdadeira e derradeira. Todavia,
descobri sem querer, que naquele mundo, a Beleza era vaga,(talvez não só
naquele mundo, mas neste que me encontro cá agora). Como ela era invisível, meus membros
farejavam-na. Eram eles que me diziam o que era belo ou horrendo. Compreendi que a Beleza vaga por aí e acolá. Mas ainda
assim a desejo, mesmo que ela serpenteie de forma ligeira, superficial e
irregular. Há certamente eternidade no que é efêmero. Quero a eternidade das
frações de segundos.
O escuro total revelou a minha
divindade. Sou o herói. Sou Teseu e Minotauro. Aquele que expande e aquele que
destrói. Só nas trevas conseguimos sê-los. Fora dela nos bipartimos e
fragmentamos. Percorro o escuro no intuito de libertar aquilo que mais protejo,
e aprisionar meus sombrios desejos. Para me libertar e me afugentar . O fio
inicial que me conduziu, acabei por superá-lo. Retesei-o e depois, sem o mínimo remorso, fiz o corte.
Alcancei o inalcançável. Uma parte disso consegui trazer para o mundo de fora,
da luz, da certeza. Infelizmente, muito do que ganhei, tive de ofertar às
sombras. Sacrifiquei para conseguir retornar. Não que a volta fosse mais nobre
que a partida, mas a covardia também faz parte de mim, confesso.
O nome da descoberta fica
guardado. Se me foi revelado, algo me fez apagar da mente. Mais importante que
conhecer a nomeação de algo, é ter na pele a sensação do que foi. E esta memória
específica nunca se apagará, pois no
universo que estive, não fui apenas herói. Fui mais que isso. Fui o rei.