Áureo tirou a chave do bolso e meteu na fechadura. Com toda a
elegância e finesse, a
escancarou. Não como sinônimo de grosseira franca, mas demonstrando a vontade
dos que entram esfomeadamente, sem pensar em seguir as regras de etiqueta., sem
nenhum traço de maldade. Apenas pela vontade de estar dentro de algo ou pôr pra
dentro. O mundo é uma torta deliciosa que merece ser bem digerida.
Sua mulher estava linda, sentada no sofá carmim da sala. Um
vestido branco gala, desenhando seu sinuoso corpo, conferindo um aspecto de
suprema perfeição física. Um fotoshop natural,
que possibilitava formas sensuais impensáveis. "Uma bela peça pode ser o
Deus das mulheres", pensou Áureo. Todo o lustro da morena perna depilada, contrastava
a tessitura alva e macia do tecido. Havia mistério naquele vestuário. Mistério
no decote que fazia dos seios, duas montanhas russas - acidentes geográficos
desejosos por serem escalados. E entre eles, um vale. Um santuário a céu aberto
dedicado a uma santa divinizada por sua cínica pureza.
Áureo pousou a vista naquele corpo como se visasse uma miragem e
dessa imagem se entorpeceu.
Tomaram o elevador e nos meros segundos da descida, a volúpia de
lábios, mãos e genitálias não se conteve. Do décimo quarto andar até o térreo, o
batom já tinha se desfeito da boca. A câmera do elevador (acostumada a isso)
sempre com seus ávidos olhos de voyeur.
Cumprimentaram o porteiro com toda educação e simpatia que é
exigida aos de bem. Tomaram um táxi, Enquanto o motorista dirigia ao embalo
apoteótico de seu gospel, quatro mãos brincavam deliciosamente entre pernas ,zíperes
e decotes. A cada tranco de quebramola, surgia um pingo de inibição. Mas logo
passava. A embreagem é mais agradável que o freio.
Saltaram em frente a uma mansão de festas. Despediram-se do
taxista sem cobrar o troco. A noite estava quente e confortável. A umidade das
matas do Itanhangá temperava o ar seco que vinha da grande avenida.
Cumprimentaram algumas pessoas que estavam do lado de fora. Subiram os três
degraus. Pronunciaram uma espécie de top
secret para um dos seguranças
e entraram.
O clube estava relativamente cheio. Enormes mesas retangulares, ornamentadas com
um refinado estilo que misturava o new
gothic com um toque fin de
siècle. Um buffet apetitoso exalava seus sabores enquanto garçons-saúvas iam e
vinham servindo seus Bourbons, Veuve Amiot, Suisse Verte, Caninhas
...Espumantes eram brindados nas divertidas rodelas de amigos. Havia gente de
todo tipo. Uma variedade democrática de músicas que passavam de Chopin a DJ Marlboro,
de Ella a Catra. Pessoas progressivamente já começando a dançar
descompassadamente. Cabeças rodopiavam fora do eixo. A felicidade surgia...
Uma senhora de cabeleira azul turquesa (dessas que lembram as
divas que ao fugirem da inexorável oxidação se tornam figuras pictóricas),
interpelou a mulher de Áureo:
- Cristina, querida, saudades!
Cristina, a mulher de Áureo beijou ternamente a face da senhora de
Copacabana, do jeito que uma ex-prostituta, grata e filial, cumprimenta sua
amável ex-cafetina.
Áureo, depois de trocar um terço das adulações necessárias,
afastou-se um pouco e deixou sua mulher se sociabilizar com o ambiente. Sempre
perseguindo as margueritas,pousou um olhar de noventa graus ao redor e percebeu
um gozo nascente nos olhares dos comensais. Todos sócios de uma prazer genuíno,
despudorado. A malícia transformada wm gestos cálidos, tal qual um filhote de
onça capturado, domesticado e criado como gato. A noite, certamente, era dos
que sabiam domar as suas feras.
Um homem mediano, cujo tronco reto ganhava uma saliência convexa
pela proeminente barriga - um dos baluartes- subiu ao púlpito, interagiu com as
pessoas, fez alguns gracejos, olhou para o mezzanino esquerdo e fez um sinal de
ordem para que u rapaz executasse alguma tarefa.
As luzes piscaram e um extenso apagão se firmou. Um silêncio
sepulcral tomou conta do salão. O clube foi ganhando uma outra feição. Um
pequeno feixe de luz amarelo febril foi saindo dos poros das paredes.
Um...dois...vários feixes se encontravam entre os vértices, escorrendo de modo
oblíquo que fascinava as vistas. Do teto até o chão. A luz foi passando do modo
reto para o espiral e no encontro com a escuridão profunda, Desenhos amorfos
foram se projetando, como ideogramas que nascem do riscado. Entre os raios
luminosos,uma faísca intensamente cristalina e abusada, percorria a luz mais
densa, correndo numa variável de três pico. Surgindo e desaparecendo durante
três milésimos de segundo. A música era feita pelos jogos de luzes. Passeavam
pelos vitrais da janelas, pelos vasculhantes translúcidos, atravessavam os
lustres, o bolão brilhoso pendurado no centro do teto. Nem os brincos, pingentes,
relógios, escravas, nada escapava. A
transmutação era total. Um inferno luzidio. Luzes que se espichavam e derretiam
para depois engrossarem. Circularidade hipnótica.
Quando todos estavam absortos de tantos truques óticos. Quando os
olhos já estavam amortecidos e delirantes, surgem quatro homens conduzindo uma
padiola que aleita uma jovem. Arreado leito, a jovem de traços magníficos e
corpo magnético é colocada numa cama tão bem preparada, que se assemelhava a um
ninho real. A cama de cedro recebe a jovem com delicadeza e cuidado.
Deitada sobre a colcha de sarja, sua cabeça é ajeitada numa
almofada de camurça. Seu corpo lindo, repousado e vívido, tornou-se alvo de uma
microprocissão. Homens e mulheres em perfeita romaria, chegavam próximo a cama
a fim de tocá-la. Beijar seus delicados pés. A camisola de seda transparente
modelava aquele corpo divinizado. Seus seios seguiam a luz que caía da
claraboia. Um cheiro de almíscar lhe percorria e inundava o salão, deixando os
associados cada vez mais excitados.
A elegância das pessoas nunca esmorecia, apesar do claustro sexual
que sufocava aquele recinto. Os corpos entraram numa frequência nervosa
insuportável. Cristina, a que sempre parte o bolo primeiro, não mais aguentando
as altas dosagens de desejo, se colocou na beirada da cama, suspendeu a
camisola da jovem, cafungando seu umbigo, aspirando o ar do ventre, num movimento
descendente. Até que um beijo eclodiu e sua boca vagou pela barriga lisa e bem
feita da menina. Suas mãos e dentes arrancaram a calcinha guardiã da menina.
Com o olhar vermelho e tenso próprio dos antropófagos, Cris virou o pescoço pra
trás e com um gesto, exigiu a presença mais tangencial do seu marido.
Áureo, um tanto tímido, colocou-se um pouco atrás de sua mulher.
Exortado por Cristina, acariciou languidamente o corpo da jovem. E assim, todos
os membros foram tomando aquela carne com afagos, beijos, toques diversos. A
deusa viva passa aos poucos a ganhar traços de santa de ouro.
A jovem ri e voluntariamente se deixa ser possuída, aberta, adorada.
Cristina, excitada, monta no corpo leve da bela. Os olhos de ambas formam uma
linha vertical. Espelhos. As almas se perdem. A glória de uma era a epifania da
outra. Os corpos se misturam. A jovem deixa escapar lágrimas sutis de emoção. O
momento era seu apogeu. Clamando piedade e admiração, pega o pescoço de Cris e
exige com o olhar, um beijo mais intenso, conquanto rápido, que perdurasse
terrivelmente pelo vagar dos séculos.
Num impulso histérico e desesperado, a moça fala num tom alto e
incisivo:
- Agora! Façam-me.
Cristina ainda envolta em desejos, demora a se desvencilhar do corpo da santa. É
a carne que hesita em se libertar. Empurrada pela jovem, levanta-se e voltando
a para trás, olha para um rapaz e diz:
- A seringa, cadê?
Prontamente o jovem (aparentando curiosidade e excitação) lhe
entrega o pedido e pergunta:
- Posso?
Cristina lhe nega essa fração de dádivas. Num impulso egoísta,
injeta a enorme seringa nas veias da
jovem. Áureo plenamente orgulhoso de sua esposa, a pega por trás e comprime
seus seios, tascando um beijo em sua nuca. Cris coloca as luvas cirúrgicas,
touca e máscara. Assim como ela, seus auxiliares se aprontam impecavelmente
para cumprir o ritual.
A moça acamada, revira os olhos procurando em cada rosto uma
alegria, um sentido existencial. Havia uma felicidade simples naquele átimo.
Como se o mundo girasse por sua existência. Ela era o sol.
Passados alguns minutos, enquanto a jovem ia se perdendo num mundo
de semiconsciência e relaxamento, Cristina tirou da bolsa um bisturi prateado.
Sua amiga de cabelo azul, pegou o pé esquerdo da jovem com firmeza. Cris foi
cortando dedinho por dedinho, sempre auxiliada por uma cureta, porta-agulha,
tesoura Metzenbaum e outros instrumentos cirúrgicos de corte. Duas pessoas
ajudavam-na a fazer a incisão e a estancar o sangue. Quando foi subindo, o uso
de uma serra elétrica para ossos foi imprescindível. Um homem barbudo recolhia
as partes do corpo numa bacia e levava a cozinha. Dois renomados chefs aguardavam as peças de carne para
prepararem o banquete final. O pessoal da cozinha estava atarefado.
A jovem tranquilamente se via sendo desmembrada, semelhante a um
corpo santo que celebra a vida eterna e unifica a sociedade. Ela era o pão. O
cordeiro sacrificado. A matéria pura e almejada. A que sacia a fome da
Humanidade.
Cris e seus assistentes operavam o grande sacramento. Áureo ia
salpicando açafrão no corpo que se desintegrava, pra realçar a beleza do ato.
Um misto de prazer indomável e abnegação espiritual preenchiam o coração dos
convivas. Cristina evocava a confraternização e o trabalho em prol daquele
corte.
O procedimento fora muito bem realizado. Tudo para que a jovem
sentisse o mínimo de dor e agonia, e sua vida fosse poupada até a derradeira
possibilidade. Não era a morte que se desejava. Era a vida que queria se
perpetuar. Não havia crime, nem suicídio. Houve um pacto, um selo entre todas
as partes. Uma entrega.
Os dedinhos, pés, tornozelos, joelhos, mãos...já estavam sendo
servidos. A moça ainda viva pôde se experimentar. A todo momento era anestesiada. Um ato convulsivo
tomou parte de seu corpo. Vômitos. Seu tronco prestes a ser desossado. Os
segundos ficaram mais ferozes. Pessoas limpando as excreções. O sangue
espichava e já não obedecia às ordens estanques, como furos de mangueira, os
jatos lavavam as peles dos contíguos.
Uma mulher trouxe um enorme cantil para guardar um pouco do fluido vital (creme
à base de sangue e óvulos era um excelente renew).
À medida que o desmembramento ia ficando mais complexo, a moça ia
murmurando de dor. Quando as tripas foram trespassadas pelo enterótomo, dois
homens enormes e horrendos, como cães leprosos e esfomeados, se jogaram em cima
do semicorpo para comerem ao cru, os órgãos. Esse gesto tenebrosos irritou
Cristina, que enojada com aquela grosseria rasteira, os repeliu. Alguns
seguranças afastaram os dois protótipos de nosferatus da cama sacrificial.
Com menos de vinte por cento do corpo intacto, a vida da jovem já
estava no corpo dos que a recebiam. A troca já tinha sido feita. Todos a
tinham. O belo corpo pertencia ao mundo. Quando o coração foi extirpado
ouviu-se uma salva de palmas vibrantes. Celebrava-se a vida. As paixões. A
generosidade, o altruísmo, o compartilhamento. Tudo deveria ser compartilhado,
menos o rosto. Em hipótese nenhuma seria desfigurado. Nada ali poderia ser
arrancado. Se a via é a pulsão da verdadeira Beleza, que esta seja eternizada
até que a natureza a desfaça. Cris teve o direito de levar a cabeça pra casa.
Depois de dias, o cérebro poderia ser comido. Só os altos sacerdotes tinham
direito às virtudes nutricionais do cérebro.
Todos satisfeitos e revigorados. Como num passe de mágica, só se
viu beleza estampada nas faces. Não havia em nenhum rosto, sinal de rugas,
sulcos intensos, frouxa tonicidade. Todos eram joviais e límpidos.
A festa continuava. A alegria e juventude se avolumando tornaram o
salão numa pista de dança. Outros três corpos foram trabalhados e servidos.
Um deles era de um cracudo magérrimo, preto da cor fosca opala.
Muitos convivas recusaram o prato. Cris e mais duas não se fizeram de rogada.
Iriam esfolar o homem para que fosse preparado um bronzeador de longa duração.
Cris, apesar de morena, no verão gostava de ficar bem retinta.
Um policial grisalho e com pinta de durão e um sociólogo barrigudo
e portando um fundo de garrafa, foram os que mais se fartaram com os órgãos do
homem. O tira queria desfigurar, humilhar o moribundo, mas foi impedido pela
maioria. A forma como ele devorou o fígado e os rins eram quase bestiais. À
revelia, teve de dividir as nádegas com o sociólogo. Uma banda pra cada um.
Enquanto aquele comia com bruta ferocidade e descompostura,o renomado sociólogo
degustava o cracudo com requinte. Entre uma garfada e outra, refletia e
conversava sobre Marx, Durkheim e Darcy Ribeiro com quem estivesse próximo. Por
ser um homem educado, culto e apresentar um prolixismo invejável e incógnito,
obteve o direito de levar o cérebro do homem pra casa.
A festa acabou com a chegada da manhã. Áureo e Cris chegaram
mortos em casa. Dormiram o domingo inteiro. Entre um despertar e outro, uma foda violenta. No dia seguinte,
Áureo se arruma pra voltar a sua maçante rotina de escritório. Cris tomando
banho. Passou creme, se penteou. Olhou para o espelho e se viu mais linda do
que nunca. Arrumou-se às pressas. O dia seria intenso. A secretária já ligou
avisando: “o consultório já está lotado”. Passou um batom coral. Olhou
novamente para o espelho, retocou a maquiagem e divagou consigo: “ ser mutável
é a única virtude que deveria ser eterna”. Saiu...