sexta-feira, 29 de março de 2013

Velhinhas e seus homens (ou assaltos causam sensação)



Um rapaz se sentou ao lado de uma velhinha, no ônibus. Virou-se para ela, que estava do lado da janela, e disse de pertinho:
- Olha só, é um assalto. Pode passar a grana.
Em altíssimo volume, a velhinha perguntou:
- Desculpa, eu sou surda, meu filho! O que é que você disse?
Antes, porém, que o rapaz repetisse a abordagem, ou tivesse vergonha dos outros passageiros, a velhinha foi se levantando e dizendo que estava chegando o seu ponto. O rapaz não teve remédio senão lhe dar passagem, e a velhinha saiu ágil de onde estava, chegando ao corredor. Diante da porta da saída, preparando-se para descer, ela, que de surda tinha nada, ouviu o rapaz comentar com alguém:
- Que velhinha burra! Não se ligou que era um assalto?

***
Outra velhinha, também em um ônibus, desta vez lotado, viajava de pé. Segurava o ferro na altura da cintura. Levantou o braço, para segurar no ferro acima da cabeça. Foi quando sentiu uma coisa deslizando pelo seu antebraço. Arrepiou-se com o arranhão, o carinho, sei lá. Olhou para o pulso e deu por falta do relógio, que ali deveria estar. Na mesma hora, percebeu um homem passando por detrás dela. O homem passava, também, por outras pessoas, sem ter como evitar esbarrar nelas.
- Você é ladrão! Um ladrão, sim! Um ladrão! Pegou meu relógio, devolve!
A primeira reação das pessoas, inclusive a do homem, foi olhar para a velhinha. A segunda, foi olhar para o homem. Ele olhou as pessoas de volta, já de cabeça uns graus abaixada, e os olhos arregalados.
- Pegou meu relógio, estava aqui preso e ele pegou! Apontou o pulso às pessoas, principalmente para o homem.
O arranhão, ou o carinho, ainda coçava, ardia, arrepiava, esquentava, sei lá. Algo havia tocado a velhinha. O homem avermelhava mais e mais. A velhinha gritava tanto que as pessoas não conseguiam deixar de olhar ora para o homem, ora para ela, sem ajudarem a segurar um ladrão. Na primeira parada, ele não se aguentou e desceu. Seguiu apressado pela rua.
Sem a presença do homem, a velhinha pôde sentar-se. As pessoas voltaram a si, e começaram a cochichar.
Algum tempo depois, ela sentiu novamente. Desta vez não era deslizando, mas prendendo no alto do braço, sob a manga da camisa. Antes, porém, que pusesse a mão para verificar, o objeto desceu braço abaixo, por conta própria. Ali estava de volta o relógio, aberto no fecho do pulso.

p.s. Esta história me foi contada desta forma. Gosto, contudo, de imaginá-la sem o que está no último parágrafo. A velhinha teve uma sensação, e esta sensação, junto à do homem, em ser acusado, não precisa da explicação que recebe, depois. O homem, afinal, a roubou ou não? E se a roubou, porque se envergonhou? Talvez ele não a tenha roubado, a velhinha foi que esqueceu o relógio em casa, ou não se lembra de tê-lo guardado na bolsa. Ou então ele a roubou, mesmo. Ladrões também se envergonham. Será que se envergonham? Estas perguntas ficariam em aberto, para o leitor que gosta ao menos um pouco de perguntas, e não se apressa em respondê-las, ou não se fixa na primeira resposta a que chega. A sensação da velhinha pode ser uma porção de coisas entre a dor e o prazer, bem como a do homem pode ser mais complexa do que pensamos.
Esta cena é um instantâneo, e como tal, sugere ser lida desconectada da realidade e de explicações corriqueiras. Sem o último parágrafo, o caráter do instantâneo, que é o de ser fugaz e recortado, como uma polaroid, soluções como “o homem a roubou, e é mais sem-vergonha, ainda, por estar envergonhado”, ou “a mulher está doida e se enganou. Olha a vergonha do homem!”, ou, ainda, “alguém a acariciou, talvez uma mosca, talvez o homem”, podem igualmente valer. A história pode ganhar muitos sentidos. Também podemos completá-la de muitos jeitos, depois que a velhinha se sentou e as pessoas cochicharam. Nossa imaginação, assim, pode voar, e os personagens ganharem características completamente modificáveis.
Além disso, se homens roubam velhinhas, isso pode não ter acontecido desta vez. Você acreditaria nisso, se não tivesse lido o último parágrafo? Não vai acreditar, a pessoa que pegar a informação geral, um fato que considera corriqueiro, e aplicar nesta situação. Para essa pessoa, toda vez que um homem esbarra numa velhinha, na muvuva de um ônibus, dá em roubo. A realidade é tão conhecida dessa pessoa, e tão desprovida de imaginação e imodificável, que todo instantâneo só faz reiterá-la, toda pizza tem o mesmo sabor, todo fato o mesmo sentido, todo sexo o mesmo gozo.
Gosto de pensar no homem beliscando o braço da velhinha, do nada, e ela se arrepiando, e depois ficando puta e tirando satisfação. E o homem avermelhando de raiva, do estardalhaço da velhinha. Na minha história, ele achou certo beliscá-la, vai entender! Sem o último parágrafo, fica mais fácil para redescrevermos sempre as pessoas, as cenas e as realidades. 
Na cidade, somos sempre assaltados. Por sensações.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Ponto de Mutação


Áureo tirou a chave do bolso e meteu na fechadura. Com toda a elegância e finesse, a escancarou. Não como sinônimo de grosseira franca, mas demonstrando a vontade dos que entram esfomeadamente, sem pensar em seguir as regras de etiqueta., sem nenhum traço de maldade. Apenas pela vontade de estar dentro de algo ou pôr pra dentro. O mundo é uma torta deliciosa que merece ser bem digerida.

Sua mulher estava linda, sentada no sofá carmim da sala. Um vestido branco gala, desenhando seu sinuoso corpo, conferindo um aspecto de suprema perfeição física. Um fotoshop natural, que possibilitava formas sensuais impensáveis. "Uma bela peça pode ser o Deus das mulheres", pensou Áureo. Todo o lustro da morena perna depilada, contrastava a tessitura alva e macia do tecido. Havia mistério naquele vestuário. Mistério no decote que fazia dos seios, duas montanhas russas - acidentes geográficos desejosos por serem escalados. E entre eles, um vale. Um santuário a céu aberto dedicado a uma santa divinizada por sua cínica pureza.

Áureo pousou a vista naquele corpo como se visasse uma miragem e dessa imagem se entorpeceu.

Tomaram o elevador e nos meros segundos da descida, a volúpia de lábios, mãos e genitálias não se conteve. Do décimo quarto andar até o térreo, o batom já tinha se desfeito da boca. A câmera do elevador (acostumada a isso) sempre com seus ávidos olhos de voyeur.

Cumprimentaram o porteiro com toda educação e simpatia que é exigida aos de bem. Tomaram um táxi, Enquanto o motorista dirigia ao embalo apoteótico de seu gospel, quatro mãos brincavam deliciosamente entre pernas ,zíperes e decotes. A cada tranco de quebramola, surgia um pingo de inibição. Mas logo passava. A embreagem é mais agradável que o freio.

Saltaram em frente a uma mansão de festas. Despediram-se do taxista sem cobrar o troco. A noite estava quente e confortável. A umidade das matas do Itanhangá temperava o ar seco que vinha da grande avenida. Cumprimentaram algumas pessoas que estavam do lado de fora. Subiram os três degraus. Pronunciaram uma espécie de top secret para um dos seguranças e entraram.

O clube estava relativamente cheio.  Enormes mesas retangulares, ornamentadas com um  refinado estilo que misturava o new gothic com um toque fin de siècle. Um buffet apetitoso exalava seus sabores enquanto garçons-saúvas iam e vinham servindo seus Bourbons, Veuve Amiot, Suisse Verte, Caninhas ...Espumantes eram brindados nas divertidas rodelas de amigos. Havia gente de todo tipo. Uma variedade democrática de músicas que passavam de Chopin a DJ Marlboro, de Ella a Catra. Pessoas progressivamente já começando a dançar descompassadamente. Cabeças rodopiavam fora do eixo. A felicidade surgia...

Uma senhora de cabeleira azul turquesa (dessas que lembram as divas que ao fugirem da inexorável oxidação se tornam figuras pictóricas), interpelou a mulher de Áureo:

- Cristina, querida, saudades!

Cristina, a mulher de Áureo beijou ternamente a face da senhora de Copacabana, do jeito que uma ex-prostituta, grata e filial, cumprimenta sua amável ex-cafetina.

Áureo, depois de trocar um terço das adulações necessárias, afastou-se um pouco e deixou sua mulher se sociabilizar com o ambiente. Sempre perseguindo as margueritas,pousou um olhar de noventa graus ao redor e percebeu um gozo nascente nos olhares dos comensais. Todos sócios de uma prazer genuíno, despudorado. A malícia transformada wm gestos cálidos, tal qual um filhote de onça capturado, domesticado e criado como gato. A noite, certamente, era dos que sabiam domar as suas feras.

Um homem mediano, cujo tronco reto ganhava uma saliência convexa pela proeminente barriga - um dos baluartes- subiu ao púlpito, interagiu com as pessoas, fez alguns gracejos, olhou para o mezzanino esquerdo e fez um sinal de ordem para que u rapaz executasse alguma tarefa.

As luzes piscaram e um extenso apagão se firmou. Um silêncio sepulcral tomou conta do salão. O clube foi ganhando uma outra feição. Um pequeno feixe de luz amarelo febril foi saindo dos poros das paredes. Um...dois...vários feixes se encontravam entre os vértices, escorrendo de modo oblíquo que fascinava as vistas. Do teto até o chão. A luz foi passando do modo reto para o espiral e no encontro com a escuridão profunda, Desenhos amorfos foram se projetando, como ideogramas que nascem do riscado. Entre os raios luminosos,uma faísca intensamente cristalina e abusada, percorria a luz mais densa, correndo numa variável de três pico. Surgindo e desaparecendo durante três milésimos de segundo. A música era feita pelos jogos de luzes. Passeavam pelos vitrais da janelas, pelos vasculhantes translúcidos, atravessavam os lustres, o bolão brilhoso pendurado no centro do teto. Nem os brincos, pingentes, relógios,  escravas, nada escapava. A transmutação era total. Um inferno luzidio. Luzes que se espichavam e derretiam para depois engrossarem. Circularidade hipnótica.


Quando todos estavam absortos de tantos truques óticos. Quando os olhos já estavam amortecidos e delirantes, surgem quatro homens conduzindo uma padiola que aleita uma jovem. Arreado leito, a jovem de traços magníficos e corpo magnético é colocada numa cama tão bem preparada, que se assemelhava a um ninho real. A cama de cedro recebe a jovem com delicadeza e cuidado.

Deitada sobre a colcha de sarja, sua cabeça é ajeitada numa almofada de camurça. Seu corpo lindo, repousado e vívido, tornou-se alvo de uma microprocissão. Homens e mulheres em perfeita romaria, chegavam próximo a cama a fim de tocá-la. Beijar seus delicados pés. A camisola de seda transparente modelava aquele corpo divinizado. Seus seios seguiam a luz que caía da claraboia. Um cheiro de almíscar lhe percorria e inundava o salão, deixando os associados cada vez mais excitados.

A elegância das pessoas nunca esmorecia, apesar do claustro sexual que sufocava aquele recinto. Os corpos entraram numa frequência nervosa insuportável. Cristina, a que sempre parte o bolo primeiro, não mais aguentando as altas dosagens de desejo, se colocou na beirada da cama, suspendeu a camisola da jovem, cafungando seu umbigo, aspirando o ar do ventre, num movimento descendente. Até que um beijo eclodiu e sua boca vagou pela barriga lisa e bem feita da menina. Suas mãos e dentes arrancaram a calcinha guardiã da menina. Com o olhar vermelho e tenso próprio dos antropófagos, Cris virou o pescoço pra trás e com um gesto, exigiu a presença mais tangencial do seu marido.

Áureo, um tanto tímido, colocou-se um pouco atrás de sua mulher. Exortado por Cristina, acariciou languidamente o corpo da jovem. E assim, todos os membros foram tomando aquela carne com afagos, beijos, toques diversos. A deusa viva passa aos poucos a ganhar traços de santa de ouro.

A jovem ri e voluntariamente se deixa ser possuída, aberta, adorada. Cristina, excitada, monta no corpo leve da bela. Os olhos de ambas formam uma linha vertical. Espelhos. As almas se perdem. A glória de uma era a epifania da outra. Os corpos se misturam. A jovem deixa escapar lágrimas sutis de emoção. O momento era seu apogeu. Clamando piedade e admiração, pega o pescoço de Cris e exige com o olhar, um beijo mais intenso, conquanto rápido, que perdurasse terrivelmente pelo vagar dos séculos.

Num impulso histérico e desesperado, a moça fala num tom alto e incisivo:

- Agora! Façam-me.

Cristina ainda envolta em desejos,  demora a se desvencilhar do corpo da santa. É a carne que hesita em se libertar. Empurrada pela jovem, levanta-se e voltando a para trás, olha para um rapaz e diz:

- A seringa, cadê?

Prontamente o jovem (aparentando curiosidade e excitação) lhe entrega o pedido e pergunta:

- Posso?

Cristina lhe nega essa fração de dádivas. Num impulso egoísta, injeta a enorme seringa  nas veias da jovem. Áureo plenamente orgulhoso de sua esposa, a pega por trás e comprime seus seios, tascando um beijo em sua nuca. Cris coloca as luvas cirúrgicas, touca e máscara. Assim como ela, seus auxiliares se aprontam impecavelmente para cumprir o ritual.

A moça acamada, revira os olhos procurando em cada rosto uma alegria, um sentido existencial. Havia uma felicidade simples naquele átimo. Como se o mundo girasse por sua existência. Ela era o sol.

Passados alguns minutos, enquanto a jovem ia se perdendo num mundo de semiconsciência e relaxamento, Cristina tirou da bolsa um bisturi prateado. Sua amiga de cabelo azul, pegou o pé esquerdo da jovem com firmeza. Cris foi cortando dedinho por dedinho, sempre auxiliada por uma cureta, porta-agulha, tesoura Metzenbaum e outros instrumentos cirúrgicos de corte. Duas pessoas ajudavam-na a fazer a incisão e a estancar o sangue. Quando foi subindo, o uso de uma serra elétrica para ossos foi imprescindível. Um homem barbudo recolhia as partes do corpo numa bacia e levava a cozinha. Dois renomados chefs aguardavam as peças de carne para prepararem o banquete final. O pessoal da cozinha estava atarefado.

A jovem tranquilamente se via sendo desmembrada, semelhante a um corpo santo que celebra a vida eterna e unifica a sociedade. Ela era o pão. O cordeiro sacrificado. A matéria pura e almejada. A que sacia a fome da Humanidade.

Cris e seus assistentes operavam o grande sacramento. Áureo ia salpicando açafrão no corpo que se desintegrava, pra realçar a beleza do ato. Um misto de prazer indomável e abnegação espiritual preenchiam o coração dos convivas. Cristina evocava a confraternização e o trabalho em prol daquele corte.

O procedimento fora muito bem realizado. Tudo para que a jovem sentisse o mínimo de dor e agonia, e sua vida fosse poupada até a derradeira possibilidade. Não era a morte que se desejava. Era a vida que queria se perpetuar. Não havia crime, nem suicídio. Houve um pacto, um selo entre todas as partes. Uma entrega.

Os dedinhos, pés, tornozelos, joelhos, mãos...já estavam sendo servidos. A moça ainda viva pôde se experimentar. A todo  momento era anestesiada. Um ato convulsivo tomou parte de seu corpo. Vômitos. Seu tronco prestes a ser desossado. Os segundos ficaram mais ferozes. Pessoas limpando as excreções. O sangue espichava e já não obedecia às ordens estanques, como furos de mangueira, os jatos  lavavam as peles dos contíguos. Uma mulher trouxe um enorme cantil para guardar um pouco do fluido vital (creme à base de sangue e óvulos era um excelente renew).

À medida que o desmembramento ia ficando mais complexo, a moça ia murmurando de dor. Quando as tripas foram trespassadas pelo enterótomo, dois homens enormes e horrendos, como cães leprosos e esfomeados, se jogaram em cima do semicorpo para comerem ao cru, os órgãos. Esse gesto tenebrosos irritou Cristina, que enojada com aquela grosseria rasteira, os repeliu. Alguns seguranças afastaram os dois protótipos de nosferatus da cama sacrificial.

Com menos de vinte por cento do corpo intacto, a vida da jovem já estava no corpo dos que a recebiam. A troca já tinha sido feita. Todos a tinham. O belo corpo pertencia ao mundo. Quando o coração foi extirpado ouviu-se uma salva de palmas vibrantes. Celebrava-se a vida. As paixões. A generosidade, o altruísmo, o compartilhamento. Tudo deveria ser compartilhado, menos o rosto. Em hipótese nenhuma seria desfigurado. Nada ali poderia ser arrancado. Se a via é a pulsão da verdadeira Beleza, que esta seja eternizada até que a natureza a desfaça. Cris teve o direito de levar a cabeça pra casa. Depois de dias, o cérebro poderia ser comido. Só os altos sacerdotes tinham direito às virtudes nutricionais do cérebro.

Todos satisfeitos e revigorados. Como num passe de mágica, só se viu beleza estampada nas faces. Não havia em nenhum rosto, sinal de rugas, sulcos intensos, frouxa tonicidade. Todos eram joviais e límpidos.

A festa continuava. A alegria e juventude se avolumando tornaram o salão numa pista de dança. Outros três corpos foram trabalhados e servidos.

Um deles era de um cracudo magérrimo, preto da cor fosca opala. Muitos convivas recusaram o prato. Cris e mais duas não se fizeram de rogada. Iriam esfolar o homem para que fosse preparado um bronzeador de longa duração. Cris, apesar de morena, no verão gostava de ficar bem retinta.

Um policial grisalho e com pinta de durão e um sociólogo barrigudo e portando um fundo de garrafa, foram os que mais se fartaram com os órgãos do homem. O tira queria desfigurar, humilhar o moribundo, mas foi impedido pela maioria. A forma como ele devorou o fígado e os rins eram quase bestiais. À revelia, teve de dividir as nádegas com o sociólogo. Uma banda pra cada um. Enquanto aquele comia com bruta ferocidade e descompostura,o renomado sociólogo degustava o cracudo com requinte. Entre uma garfada e outra, refletia e conversava sobre Marx, Durkheim e Darcy Ribeiro com quem estivesse próximo. Por ser um homem educado, culto e apresentar um prolixismo invejável e incógnito, obteve o direito de levar o cérebro do homem pra casa.

A festa acabou com a chegada da manhã. Áureo e Cris chegaram mortos em casa. Dormiram o domingo inteiro. Entre um despertar e outro, uma foda violenta. No dia seguinte, Áureo se arruma pra voltar a sua maçante rotina de escritório. Cris tomando banho. Passou creme, se penteou. Olhou para o espelho e se viu mais linda do que nunca. Arrumou-se às pressas. O dia seria intenso. A secretária já ligou avisando: “o consultório já está lotado”. Passou um batom coral. Olhou novamente para o espelho, retocou a maquiagem e divagou consigo: “ ser mutável é a única virtude que deveria ser eterna”. Saiu...

segunda-feira, 4 de março de 2013

Dois Lados




  Mariana, depois de fazer amor com Paulo, se despede dele com uma cara estranha. Paulo pergunta:- Alguma coisa errada?
Mariana, pensando em Olívia, responde:-…Nada de errado meu amor!
Paulo se despede, sabendo que Mariana está mentindo. Quando desce a escada da casa de Mariana, Paulo, olhando pra trás e vendo que ela já fechou a porta, sobe a escada de volta, mas pensa nela, descendo novamente a escada e , outra vez, sem se lembrar se o primeiro pé que pôs no primeiro degrau foi “o que tem que ser”. Paulo sobe a escada mais uma vez e desce, dessa vez pondo primeiro o pé direito…Assim, indo embora ,agora tranquilo,  na saída do portão de Mariana encontra Olívia, que, mesmo sem conhecê-lo, abre um sorriso enorme, lhe aperta a mão e toma uns dez minutos de seu tempo…da tchau pra ele e diz , como se tivesse um dom de saber como está a vida de uma pessoa, que é só acreditar, que tudo vai dar certo. Paulo, então, segue pensando: -Mulher louca, eu ein!
  Olívia entra na casa  de Mariana, que vendo que ela não está mais em depressão, fica felicíssima , lhe dá um abraço e um beijão, que pareceu uma eternidade. Porém, logo depois, percebe que Olívia agora está na fase maníaca, se sentindo a dona do universo, mas sem se preocupar por já conhecer muito bem Olívia e sua doença. Mariana e Olívia, se beijando e acariciando, fazem sexo ali mesmo, no chão da sala.
  Mariana evita Paulo durante duas semanas, que vai à casa de dela sem avisar , para  ela não o rejeitar novamente. Mariana, então, explica a Paulo que está amando Olívia. Paulo ,perplexo por descobrir que Mariana é bissexual, porém já sabendo que tinha alguma coisa errada no relacionamento, pela mudança de comportamento de Mariana ultimamente, se despede de Mariana não muito triste. Mariana ,olhando pela janela, vê que Paulo dessa vez não sobe a escada novamente, e sorri levemente.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Hoje e amanhã


Ontem, quando fui dormir, liguei o rádio-relógio e passei por todas as estações. Procurava a MPB Fm. Quero conhecer mais música brasileira. E a isso não estou me obrigando. Sintonizei a estação e fiquei ouvindo no escuro. Muitas daquelas músicas que tocaram eu já conhecia. A maioria, porém, ouvi poucas vezes e não as tinha bem guardadas. Canções antigas, entre uma nova ou outra, se sucediam, e eu não desligava o rádio e o ouvido. Uma hora tocou essa:

“Ei, mãe, não sou mais menino.
Não é justo que também queira parir meu destino.
Você já fez a sua parte me pondo no mundo.
Que agora é meu dono, mãe
e nos seus planos não estão você.
Proteção desprotege
E carinho demais faz arrepender.”

Reconheci a voz do Erasmo. Sei pouquíssimas músicas dele, não sabia dessa. Escutei com atenção, pensando muito. Quando terminou, preferi até desligar o rádio. Fiquei com a melodia repetindo capengamente na cabeça, junto aos pedaços de letra que consegui guardar. Caí no sono, mas ainda assim continuei a tocá-la. Isto me fez acordar algumas vezes durante a noite. Coincidentemente queria ir ao banheiro. Em uma dessas vezes, disse pra mim mesmo, aconselhando, que amanhã eu poderia procurar na internet, eu não precisava ficar me perturbando. Esta música não é de hoje, e não desaparecerá assim. Não será difícil encontrá-la, quiçá aprendê-la.
De manhã pulei da cama antes do que planejava, sem me preocupar se teria sono durante o dia. Fui direto ouvir a música na internet. Ouvi umas três vezes, acompanhando com a letra. Ela continua assim:

“Ei, mãe, já sei de antemão
que você fez tudo por mim e jamais quer que eu sofra.
Pois sou seu único filho
mas contudo não posso fazer nada.
A barra tá pesada, mãe,
e quem tá na chuva tem que se molhar.
No início vai ser difícil,
mas depois você vai se acostumar.”
  
                Fui à rua fazer algo que não lembro agora. Me meti no meio de uma porção de gente apressada. Um indivíduo dentre outros no mundo. No meu cabelo faltou um pente antes de sair. Na minha camisa, um bom ferro. Agora era comigo mesmo. A música fez-me andar devagar e olhar bastante o que os outros faziam. Num trecho de rua, reparei em uma nuca e começo de face. Os conhecia. Ultrapassei a pessoa para olhá-la de frente. Falei com aquele senhor magro, de suspensórios, que também andava devagar e parecia nada perder do que passava. “O senhor é aquele jornalista?”. “Sou, mas não sei se isso é bom ou ruim.” “Só não lembro o nome do senhor.” “Milton Graça.” “Acompanho o programa do senhor, o Cara e Coroa”. Uma verdade. É assim: um cara como eu que vai para algum lugar entrevistar alguém a respeito de alguma coisa. Milton, o coroa, faz a mesma coisa. E ambos se encontram pra debater sobre o que encontraram.
Ele me disse que no seu canal ainda há gente fazendo jornalismo daquele jeito, mas andou tendo uns desentendimentos com o diretor. Quis saber minha profissão. Me chamou de colega. ”Gostamos tanto de ouvir histórias que quando não ouvimos, inventamos.”, devolvi. Já estávamos dentro do shopping, para onde eu não precisava ter ido. Paramos num lugar bom pra  atrapalhar a passagem. Ele se formara em direito, mas não exerceu a profissão por achá-la muito chata. Não achava possível uma pessoa defender um ponto de vista que não fosse o dela, defender um cara que ela sabe culpado. “Sem falar que a gente muda. Posso ser um ladrão, um assassino sexual, e estar aqui falando com você. Como estabelecer a culpa e a punição?” Por que fez direito, então? Pra desistir e começar com esse negócio de conversar com as pessoas na rua? E ele fala muito, não só ouve. Não é preciso ficar calado, achando que não se mexe no que ouve. Milton mexeu legal. Cada um foi pro seu lado, sem medo do outro e do que falou.
Na frente do shopping, um cara chama meu nome. O dono da locadora de vídeo-game que frequentei há 15 anos. Há 20, eu frequentava outra. E outra, ainda, há 17. César sempre foi baixinho. Nem passando todo o tempo atrás do balcão, sem nunca ser visto pisando fora, ele usava daqueles caixotes de aumentar altura, que usam em fotos ou na TV. Gostava daquilo de ser baixinho e aparentemente enfezado. A molecada perturbava, e ele xingava o permitido. Os moleques então voltavam as energias uns contra os outros. Certa noite eu o encontrei largado num dos bancos da praça de frente à locadora. Já era tarde, os casais iam embora e só ficavam os que jogam, vendem, fumam e dormem. “Você está bem? Precisa de alguma coisa?” Ele apenas sorria. Na locadora era raro ele sorrir. “Está com fome? Vou trazer um pão lá de casa pra você”. Senti nele aquele cheiro que já senti em outros, e que nunca consegui saber se era de suor de rua ou de cerveja. Acho que é tudo a mesma coisa. O riso dele me lembrou aquela outra do Erasmo:

“Antigamente quando eu me excedia
Ou fazia alguma coisa errada
Naturalmente minha mãe dizia
Ele é uma criança e não entende nada
Por dentro eu ria satisfeito e mudo
Eu era um homem e entendia tudo”

Eu não entendia aquele corpo pequeno, espreguiçado e avermelhado. Ele tinha um par de muletas próximo de si. Estava na rua ou não? Lógico que estava. Mas estava miserável? Porra, o cara não pode tomar umas? Não pode dormir na praça? Na verdade, eu não sei. Se eu vivesse em pé atrás de um balcão, iria querer dar uma esticada nas pernas e tomar um vento, sem pressa, mesmo que estivesse sujo. A gente nunca percebe o quanto está sujo, só quem vem de casa fica reparando. Bem, penso nessas coisas agora. Na hora, o que falei pra ele foi sério, embora parecesse sacanagem. Ele respondeu de sacanagem, também. Poderia me ouvir inteiro, eu é que não poderia sustentar minha bondade de meia tigela e a vontade de ir logo pra casa.

“Hoje só com meus problemas
Rezo muito mas eu não me iludo
Sempre me dizem quando fico sério
Ele é um homem e entende tudo
Por dentro com a alma tarantada
Sou uma criança e não entendo nada”

                Nesse reencontro, então, ele estava atrás do volante de um taxi. Ainda servindo, sem rir das besteiras que a gente fala. O nome da locadora era Crocodile Games, e eu tinha que relembrar para ele, só de maldade. “Esse é o carro crocodilo”. Passamos batido por isso que eu disse, e fomos direto pra falta de assunto do “você mora aqui? eu trabalho ali.” Ele estava sério, como sempre, mas fora da locadora. Elas andam fechando. Mas criança que não entende nada, enfim, pode mudar do balcão pro volante, e do volante pra começar a ouvir os outros. Só de sacanagem.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Mudança



Eu mudo, tu mudas, ele muda. Nós mudamos. Mudamos. Eu, meu marido, nossos pequenos de quatro patas, as plantas e as coisas acumuladas nos primeiros cinco anos de casamento. Voltamos de uma pacata cidade do sul de Minas para nem tão agitada BH. Nem tão agitada, mas muito agitada ao nosso gosto. Aos nossos costumes. Nossa vida de família isolada.  

Mudança repentina, feita com sorte, nada se quebrou, nem molhou. O único problema foi ter ido para casa errada. Esperávamos uma coisa e foi outra. Do plano A para o B foi um pulo. Um pulo distante, complicado.

Complicado porque todas as coisas ficaram por mais de um mês desorganizadas nas caixas enquanto a nova casa de destino, muito antiga por sinal, iniciava uma reforma. Se as caixas de mudanças já são terríveis, imaginem: caixas + reforma + três cachorros na casa errada + ladainha e outros problemas.

Como é bom ter o nosso espaço! Um cantinho no mundo com aqueles que nos fazem bem. A estante de livros no quarto de estudos. As roupas guardadas no armário, a prateleira com as maquiagens dispostas. Plantas vistosas, cachorros brincando.

Levar tudo embora num caminhão e recomeçar de novo. Refletir. Valorizar coisas simples. Sentir novamente o gostinho de recém-casados. Talvez seja isso. O lado bom de toda essa confusão, fortalecimento dos laços, amadurecimento.