Um rapaz se sentou ao lado de uma velhinha, no ônibus.
Virou-se para ela, que estava do lado da janela, e disse de pertinho:
- Olha só, é um assalto. Pode passar a grana.
Em altíssimo volume, a velhinha perguntou:
- Desculpa, eu sou surda, meu filho! O que
é que você disse?
Antes, porém, que o rapaz repetisse a
abordagem, ou tivesse vergonha dos outros passageiros, a velhinha foi se
levantando e dizendo que estava chegando o seu ponto. O rapaz não teve remédio
senão lhe dar passagem, e a velhinha saiu ágil de onde estava, chegando ao
corredor. Diante da porta da saída, preparando-se para descer, ela, que de
surda tinha nada, ouviu o rapaz comentar com alguém:
- Que velhinha burra! Não se ligou que era um
assalto?
***
Outra velhinha, também em um ônibus, desta vez
lotado, viajava de pé. Segurava o ferro na altura da cintura. Levantou o braço,
para segurar no ferro acima da cabeça. Foi quando sentiu uma coisa deslizando
pelo seu antebraço. Arrepiou-se com o arranhão, o carinho, sei lá. Olhou para o
pulso e deu por falta do relógio, que ali deveria estar. Na mesma hora, percebeu
um homem passando por detrás dela. O homem passava, também, por outras pessoas,
sem ter como evitar esbarrar nelas.
- Você é ladrão! Um ladrão, sim! Um ladrão! Pegou meu relógio, devolve!
A primeira reação das pessoas, inclusive a do
homem, foi olhar para a velhinha. A segunda, foi olhar para o homem. Ele olhou as
pessoas de volta, já de cabeça uns graus abaixada, e os olhos arregalados.
- Pegou meu relógio, estava aqui preso e ele
pegou! Apontou o pulso às pessoas, principalmente para o homem.
O arranhão, ou o carinho, ainda coçava, ardia,
arrepiava, esquentava, sei lá. Algo havia tocado a velhinha. O homem avermelhava
mais e mais. A velhinha gritava tanto que as pessoas não conseguiam deixar de olhar
ora para o homem, ora para ela, sem ajudarem a segurar um ladrão. Na primeira
parada, ele não se aguentou e desceu. Seguiu apressado pela rua.
Sem a presença do homem, a velhinha pôde
sentar-se. As pessoas voltaram a si, e começaram a cochichar.
Algum tempo depois, ela sentiu novamente. Desta
vez não era deslizando, mas prendendo no alto do braço, sob a manga da camisa. Antes,
porém, que pusesse a mão para verificar, o objeto desceu braço abaixo, por
conta própria. Ali estava de volta o relógio, aberto no fecho do pulso.
p.s. Esta história me foi contada desta forma.
Gosto, contudo, de imaginá-la sem o que está no último parágrafo. A velhinha
teve uma sensação, e esta sensação, junto à do homem, em ser acusado, não
precisa da explicação que recebe, depois. O homem, afinal, a roubou ou não? E
se a roubou, porque se envergonhou? Talvez ele não a tenha roubado, a velhinha
foi que esqueceu o relógio em casa, ou não se lembra de tê-lo guardado na
bolsa. Ou então ele a roubou, mesmo. Ladrões também se envergonham. Será que se
envergonham? Estas perguntas ficariam em aberto, para o leitor que gosta ao
menos um pouco de perguntas, e não se apressa em respondê-las, ou não se fixa na
primeira resposta a que chega. A sensação da velhinha pode ser uma porção de
coisas entre a dor e o prazer, bem como a do homem pode ser mais complexa do
que pensamos.
Esta cena é um instantâneo, e como tal, sugere
ser lida desconectada da realidade e de explicações corriqueiras. Sem o último
parágrafo, o caráter do instantâneo, que é o de ser fugaz e recortado, como uma
polaroid, soluções como “o homem a roubou, e é mais sem-vergonha, ainda, por
estar envergonhado”, ou “a mulher está doida e se enganou. Olha a vergonha do
homem!”, ou, ainda, “alguém a acariciou, talvez uma mosca, talvez o homem”, podem
igualmente valer. A história pode ganhar muitos sentidos. Também podemos
completá-la de muitos jeitos, depois que a velhinha se sentou e as pessoas
cochicharam. Nossa imaginação, assim, pode voar, e os personagens ganharem
características completamente modificáveis.
Além disso, se homens roubam velhinhas, isso
pode não ter acontecido desta vez. Você acreditaria nisso, se não tivesse lido
o último parágrafo? Não vai acreditar, a pessoa que pegar a informação geral,
um fato que considera corriqueiro, e aplicar nesta situação. Para essa pessoa,
toda vez que um homem esbarra numa velhinha, na muvuva de um ônibus, dá em
roubo. A realidade é tão conhecida dessa pessoa, e tão desprovida de imaginação
e imodificável, que todo instantâneo só faz reiterá-la, toda pizza tem o mesmo sabor,
todo fato o mesmo sentido, todo sexo o mesmo gozo.
Gosto de pensar no homem beliscando o braço da
velhinha, do nada, e ela se arrepiando, e depois ficando puta e tirando satisfação.
E o homem avermelhando de raiva, do estardalhaço da velhinha. Na minha
história, ele achou certo beliscá-la, vai entender! Sem o último parágrafo, fica
mais fácil para redescrevermos sempre as pessoas, as cenas e as realidades.
Na cidade, somos sempre assaltados. Por sensações.
Na cidade, somos sempre assaltados. Por sensações.
Nenhum comentário:
Postar um comentário