quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Hoje e amanhã


Ontem, quando fui dormir, liguei o rádio-relógio e passei por todas as estações. Procurava a MPB Fm. Quero conhecer mais música brasileira. E a isso não estou me obrigando. Sintonizei a estação e fiquei ouvindo no escuro. Muitas daquelas músicas que tocaram eu já conhecia. A maioria, porém, ouvi poucas vezes e não as tinha bem guardadas. Canções antigas, entre uma nova ou outra, se sucediam, e eu não desligava o rádio e o ouvido. Uma hora tocou essa:

“Ei, mãe, não sou mais menino.
Não é justo que também queira parir meu destino.
Você já fez a sua parte me pondo no mundo.
Que agora é meu dono, mãe
e nos seus planos não estão você.
Proteção desprotege
E carinho demais faz arrepender.”

Reconheci a voz do Erasmo. Sei pouquíssimas músicas dele, não sabia dessa. Escutei com atenção, pensando muito. Quando terminou, preferi até desligar o rádio. Fiquei com a melodia repetindo capengamente na cabeça, junto aos pedaços de letra que consegui guardar. Caí no sono, mas ainda assim continuei a tocá-la. Isto me fez acordar algumas vezes durante a noite. Coincidentemente queria ir ao banheiro. Em uma dessas vezes, disse pra mim mesmo, aconselhando, que amanhã eu poderia procurar na internet, eu não precisava ficar me perturbando. Esta música não é de hoje, e não desaparecerá assim. Não será difícil encontrá-la, quiçá aprendê-la.
De manhã pulei da cama antes do que planejava, sem me preocupar se teria sono durante o dia. Fui direto ouvir a música na internet. Ouvi umas três vezes, acompanhando com a letra. Ela continua assim:

“Ei, mãe, já sei de antemão
que você fez tudo por mim e jamais quer que eu sofra.
Pois sou seu único filho
mas contudo não posso fazer nada.
A barra tá pesada, mãe,
e quem tá na chuva tem que se molhar.
No início vai ser difícil,
mas depois você vai se acostumar.”
  
                Fui à rua fazer algo que não lembro agora. Me meti no meio de uma porção de gente apressada. Um indivíduo dentre outros no mundo. No meu cabelo faltou um pente antes de sair. Na minha camisa, um bom ferro. Agora era comigo mesmo. A música fez-me andar devagar e olhar bastante o que os outros faziam. Num trecho de rua, reparei em uma nuca e começo de face. Os conhecia. Ultrapassei a pessoa para olhá-la de frente. Falei com aquele senhor magro, de suspensórios, que também andava devagar e parecia nada perder do que passava. “O senhor é aquele jornalista?”. “Sou, mas não sei se isso é bom ou ruim.” “Só não lembro o nome do senhor.” “Milton Graça.” “Acompanho o programa do senhor, o Cara e Coroa”. Uma verdade. É assim: um cara como eu que vai para algum lugar entrevistar alguém a respeito de alguma coisa. Milton, o coroa, faz a mesma coisa. E ambos se encontram pra debater sobre o que encontraram.
Ele me disse que no seu canal ainda há gente fazendo jornalismo daquele jeito, mas andou tendo uns desentendimentos com o diretor. Quis saber minha profissão. Me chamou de colega. ”Gostamos tanto de ouvir histórias que quando não ouvimos, inventamos.”, devolvi. Já estávamos dentro do shopping, para onde eu não precisava ter ido. Paramos num lugar bom pra  atrapalhar a passagem. Ele se formara em direito, mas não exerceu a profissão por achá-la muito chata. Não achava possível uma pessoa defender um ponto de vista que não fosse o dela, defender um cara que ela sabe culpado. “Sem falar que a gente muda. Posso ser um ladrão, um assassino sexual, e estar aqui falando com você. Como estabelecer a culpa e a punição?” Por que fez direito, então? Pra desistir e começar com esse negócio de conversar com as pessoas na rua? E ele fala muito, não só ouve. Não é preciso ficar calado, achando que não se mexe no que ouve. Milton mexeu legal. Cada um foi pro seu lado, sem medo do outro e do que falou.
Na frente do shopping, um cara chama meu nome. O dono da locadora de vídeo-game que frequentei há 15 anos. Há 20, eu frequentava outra. E outra, ainda, há 17. César sempre foi baixinho. Nem passando todo o tempo atrás do balcão, sem nunca ser visto pisando fora, ele usava daqueles caixotes de aumentar altura, que usam em fotos ou na TV. Gostava daquilo de ser baixinho e aparentemente enfezado. A molecada perturbava, e ele xingava o permitido. Os moleques então voltavam as energias uns contra os outros. Certa noite eu o encontrei largado num dos bancos da praça de frente à locadora. Já era tarde, os casais iam embora e só ficavam os que jogam, vendem, fumam e dormem. “Você está bem? Precisa de alguma coisa?” Ele apenas sorria. Na locadora era raro ele sorrir. “Está com fome? Vou trazer um pão lá de casa pra você”. Senti nele aquele cheiro que já senti em outros, e que nunca consegui saber se era de suor de rua ou de cerveja. Acho que é tudo a mesma coisa. O riso dele me lembrou aquela outra do Erasmo:

“Antigamente quando eu me excedia
Ou fazia alguma coisa errada
Naturalmente minha mãe dizia
Ele é uma criança e não entende nada
Por dentro eu ria satisfeito e mudo
Eu era um homem e entendia tudo”

Eu não entendia aquele corpo pequeno, espreguiçado e avermelhado. Ele tinha um par de muletas próximo de si. Estava na rua ou não? Lógico que estava. Mas estava miserável? Porra, o cara não pode tomar umas? Não pode dormir na praça? Na verdade, eu não sei. Se eu vivesse em pé atrás de um balcão, iria querer dar uma esticada nas pernas e tomar um vento, sem pressa, mesmo que estivesse sujo. A gente nunca percebe o quanto está sujo, só quem vem de casa fica reparando. Bem, penso nessas coisas agora. Na hora, o que falei pra ele foi sério, embora parecesse sacanagem. Ele respondeu de sacanagem, também. Poderia me ouvir inteiro, eu é que não poderia sustentar minha bondade de meia tigela e a vontade de ir logo pra casa.

“Hoje só com meus problemas
Rezo muito mas eu não me iludo
Sempre me dizem quando fico sério
Ele é um homem e entende tudo
Por dentro com a alma tarantada
Sou uma criança e não entendo nada”

                Nesse reencontro, então, ele estava atrás do volante de um taxi. Ainda servindo, sem rir das besteiras que a gente fala. O nome da locadora era Crocodile Games, e eu tinha que relembrar para ele, só de maldade. “Esse é o carro crocodilo”. Passamos batido por isso que eu disse, e fomos direto pra falta de assunto do “você mora aqui? eu trabalho ali.” Ele estava sério, como sempre, mas fora da locadora. Elas andam fechando. Mas criança que não entende nada, enfim, pode mudar do balcão pro volante, e do volante pra começar a ouvir os outros. Só de sacanagem.

3 comentários:

  1. Os bons contos também são feitos de música boa. E você é bom, Thiago. Até animei visitando nosso blog, dessa vez, com calma, e divulguei no face. Já tava passando da hora de divulgar. Vamos pegar pra valer e continuar que está dando certo. Abraços, Lívia.

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  2. Gostei,Thiago. Somos o tempo todo mudanças...

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